Folha de S. Paulo


Autor de narrativa crua sobre a Jamaica, Marlon James virá à Flip

Bryan Derballa/The New York Times
FILE -- A portrait of writer Marlon James, the Jamaican novelist, in the Baychester neighborhood of the Bronx, New York, Sept. 20, 2014. James won the Man Booker Prize in October, 2015, for his novel â€A Brief History of Seven Killings,†a raw, violent epic that uses the attempted assassination of Bob Marley in 1976 to explore Jamaican politics, gang wars and drug trafficking. James is the first Jamaican-born author to win the Man Booker, Britainâ€s most prestigious literary award. (Bryan Derballa/The New York Times) ORG XMIT: NYT8 ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
O escritor jamaicano Marlon James no bairro do Bronx, em Nova York

Logo nas primeiras páginas, é possível ver o romanção prestes a se desdobrar a olhos vistos -uma lista traz 76 personagens que cruzarão a narrativa de "Breve História de Sete Assassinatos" (ed. Intrínseca), do escritor jamaicano Marlon James.

Em breve, os leitores poderão conhecê-lo de perto. O autor vem ao país apresentar seu catatau na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que acontece de 26 a 30 de julho -e será um dos principais nomes do evento. Ainda em tradução, o livro deve estar à venda a partir de 6 de julho.

O surgimento do escritor na cena internacional era de todo improvável: nascido na Jamaica e radicado nos Estados Unidos, James foi rejeitado por 78 editoras até conseguir publicar a primeira obra, "John Crow's Devil". Chegou a desistir da carreira de autor.

Michael Ochs Archives/Getty Images
UNSPECIFIED - NOVEMBER 27: Photo of Bob Marley. (Photo by Michael Ochs Archives/Getty Images) ORG XMIT: 143415101 ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Bob Marley em show de 1979, em Los Angeles

"Breve História" saiu no Reino Unido pela editora independente Oneworld e, em 2015, levou o Man Booker Prize, um dos principais prêmios literários do mundo.

O leitor não deve esperar cores e perfumes do Caribe; o romance é pintado em tintas bem mais sombrias. Pelas páginas, desfilam assassinos, traficantes, ladrões, espiões da CIA, viciados e políticos.

A narrativa gira em torno da tentativa de assassinato do cantor Bob Marley, em 1976, para contar a história da Jamaica nos anos 1970 e 1980, décadas seguintes ao fim do domínio britânico na ilha. É um período de grande violência social naquele país.

Em entrevista à Folha, o escritor diz não se sentir filiado à literatura pós-colonial, corrente que abarca a produção de países que conquistaram a independência no século 20. "O período ainda nos influencia. Mas o termo não se aplica à minha literatura porque pressupõe o colonialismo presente como um complexo."

"O legado colonial ainda existe na Jamaica. Mas minha geração não cresceu tendo o Reino Unido como referência, e sim os Estados Unidos. Minhas referências são Vila Sésamo, Prince, Michael Jackson. Minha consciência de artista não se coloca como uma reação ao Reino Unido."

Marlon James trouxe essa visão para a sua linguagem. Enquanto a gramática britânica segue o padrão ensinado nas escolas de seu país, ele incluiu no romance o patois jamaicano, dialeto com influência do inglês.
"Antes, escrevíamos [literatura] em um inglês muito britânico. Um cidadão britânico não conseguirá reconhecer minha linguagem com a mesma facilidade [de antes]."

Em vez de elencar escritores como seus antepassados literários, ele se lembra logo da música, em especial do reggae, criado nos anos 1960. O ritmo surgiu a partir da ideia de ser a voz do povo.

"Meu uso do patois vem daí, antes era usado para piada. O reggae também surgiu com a ideia de falar de temas sérios com uma linguagem das ruas. Isso influenciou toda a minha geração de escritores."

Não é só a influência difusa; dezenas de canções são citadas na história. O autor, aliás, foi crítico musical na juventude -"Joia", de Caetano, é um dos discos mais importantes de sua vida ("Mas melhor não falar disso, vocês devem estar cansados de estrangeiros falando da tropicália").

Breve História de Sete Assassinatos
Marlon James
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POLIFONIA
Não que James deixe de se sentir herdeiro literário de alguém. Para o leitor familiarizado, salta aos olhos a influência de William Faulkner (1897-1962), representante do alto modernismo americano.

Não é só o ar sombrio, mas a própria estrutura do livro que remete a "Enquanto Agonizo", obra do norte-americano. Com o uso da polifonia, recurso explorado de várias formas por Faulkner, cada capítulo de "Breve História" é narrado por um personagem.

Marlon James confirmou a relação. "Quando travei na escrita, fui reler 'Enquanto Agonizo' e foi ótimo. A ideia de vários narradores em primeira pessoa me ajudou."

Os mortos que surgem aqui e ali como narradores de "Breve História" não são só referência a "Enquanto Agonizo" -que tem um personagem defunto-, mas à tradição oral afro-caribenha.

"A ideia de um morto que conta uma história não é estranha a essa tradição, próxima do surrealismo. São personagens que se dirigem diretamente ao leitor. Assim como não é estranha à tradição do romance, porque existe no realismo fantástico."

O recurso remete ainda ao coro grego. Como nas tragédias, aqui fantasmas assumem a função de quem vê elementos na história que os personagens não podem ver; dizem coisas que os vivos não podem ouvir e falam com o leitor.

Dado o tamanho da ambição do livro, seria fácil filiá-lo à família do "grande romance" -aquele com a ambição de representar uma nação e interpretá-la. Mas Marlon James não concorda: "Não tinha isso em mente ao escrever. Só estava tentando contar uma história sobre fatos e pessoas que me assombravam. Mas é claro que a sociologia e a política da Jamaica iam contaminar a história."

A brutalidade das forças de segurança é outro elemento presente no romance do autor, filho de policiais.

"A polícia era um instrumento do poder colonial. Uma arma para manter a maioria sob controle. E o colonialismo ensinou às pessoas que tudo é uma questão de classe, não de raça, como se só importasse seu esforço [para ascender socialmente]. Se é assim, por que há brancos que só têm amigos brancos?", questiona.

CURA GAY
O escritor não viveu nada de perto do que narra. Após o sucesso do livro, que já ganhou 23 edições pelo mundo, costuma ser questionado pelo público sobre crescer no meio da violência. E se irrita. Ele morava em um subúrbio burguês jamaicano e tinha uma vida relativamente pacata, a não ser pelos conflitos quanto à sua sexualidade.

Em 2015, escreveu sobre o assunto em artigo no jornal "The New York Times": sabia que precisava sair de seu país, "fosse num caixão ou num avião". Contou ter passado por um exorcismo na adolescência, para "curá-lo" da homossexualidade. Vomitou durante o ritual, mas saiu dele tão gay quanto antes.

Sua origem, afinal, interessa? Setores tradicionais da crítica literária dizem que pouco importa quem escreve, mas o que está escrito. Assim, faria pouca diferença se o convidado da Flip é negro e gay.

"É algo muito bom em que acreditar, pensar que a raça não importa. Mas ela é o motivo pelo qual alguns autores continuam desconhecidos ou demoram 200 anos para isso acontecer. E não quer dizer que eles não sejam bons."

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