Folha de S. Paulo


Em novo filme, Lars Von Trier desce ao inferno para tentar voltar a Cannes

Divulgação
Lars von Trier em foto de divulgação do seu novo filme
Lars von Trier em foto de divulgação do seu novo filme "The House that Jack Built"

Em "A Divina Comédia", Dante precisou cruzar nove círculos do inferno antes de ascender ao paraíso.

Assim como o poeta florentino, o cineasta dinamarquês Lars von Trier também vaga por seus próprios vales sombrios para encontrar alguma redenção desde que disse, em 2011, "compreender" Hitler e ser banido do Festival de Cannes.

Foi na obra dantesca que o controverso diretor encontrou os insumos para criar "The House that Jack Built" (a casa que Jack construiu), filme sobre a trajetória de um serial killer com o qual ele espera retornar a Cannes.

"Lars precisa de muita neve", diz Louise Vesth, produtora que achou gelo suficiente em Dalsland, cidadezinha sueca de 50 mil habitantes, um punhado de pinheiros esquálidos e atmosfera lúgubre a 430 km de Estocolmo.

No caminho de ônibus para o set do filme, o grupo de jornalistas do qual a Folha fez parte indagava o que levou o dinamarquês a escolher um local tão isolado. "Há um ar de ameaça silenciosa espreitando as casas, não?", opinou uma repórter sueca.

Lars von Trier anda lentamente, olha para baixo e usa a mão esquerda para segurar a tremedeira da direita quando adentra o local da entrevista à imprensa: uma casa que serve de base para as filmagens, próxima de um galpão onde acabara de gravar.

É a primeira entrevista coletiva do diretor desde 2011.

O alcoolismo, que ele largou "só em parte", vem à tona logo no início. "Estou me esforçando para não beber tanto", diz. "Infelizmente não surgiu nenhuma droga no caminho." Em outra ocasião, havia afirmado que sem o álcool sofre de bloqueio criativo.

ARTE E MORTES EM SÉRIE

Von Trier vê semelhanças entre seu ofício como artista e a matança em série: "Você tem de ser cínico nos dois casos". No longa, cada assassinato cometido por Jack é descrito como uma obra de arte, uma arquitetura de homicídios que aparece impressa no título do longa.

"Por que decidi fazer um filme de gênero? Não sei. Aos 61, tenho o direito de dizer que não faço ideia de porra nenhuma", diz o cineasta.

"Todas as mulheres com quem me envolvi eram loucas por serial killers. Deve ter algo a ver comigo", brinca.

Matt Dillon ("Crash") é quem faz Jack. Entre uma morte e outra, o filme encadeia um diálogo entre o protagonista e Verge (Bruno Ganz) –uma versão moderna de Virgílio, o poeta que conduz Dante pelas entranhas afuniladas do inferno.

Na cena que a reportagem acompanhou, Uma Thurman interpreta uma mulher perdida na nevasca que se tornará vítima do assassino em série.

A câmera na mão ziguezagueia entre os atores, focando e desfocando seus rostos –traço estético típico dos filmes do diretor dinamarquês.

Orçada em € 8,7 milhões (R$ 28,7 milhões), a produção terá uma boa dose de efeitos visuais –"Não posso dizer como serão", afirma Von Trier.

Em um comunicado enviado a distribuidores internacionais, o cineasta escreve que imagina um epílogo "poeticamente grandioso", uma mistura entre "imagens abstratas da mente e realismo".

O INFERNO DE VON TRIER

Os recônditos do inferno não são estranhos ao diretor dinamarquês, que purgou a sua própria depressão numa trilogia temática: o pesar (em "Anticristo"), a letargia (em "Melancolia") e a autodestruição (em "Ninfomaníaca").

Sua ansiedade o impede de entrar em aviões: Von Trier nunca pisou nos Estados Unidos, cuja cultura ele destrinchou cinematograficamente, seja pelo viés da vida em comunidade (no brechtiano "Dogville") ou dos resquícios da escravidão ("Manderlay").

"Melancolia" foi o longa que lhe abriu outras portas infernais: foi durante a divulgação do filme, no Festival de Cannes, em 2011, que o cineasta fez piada com nazismo: "Hitler fez coisas erradas, mas eu consigo vê-lo sentado ali em seu bunker no fim."

A mostra francesa, que vinha servindo de vitrine ao cineasta desde 1991, o baniu, e a distribuidoras argentina DC, que venderia o filme no Cone Sul (exceto no Brasil), rescindiu o contrato de pronto.

Três anos depois, para apresentar "Ninfomaníaca" no Festival de Berlim, Von Trier não participou da entrevista à imprensa, mas posou com uma camiseta com os dizeres "Persona non grata".

MAIS PIADA COM HITLER

Cannes não sai do horizonte de Von Trier. Para filmar "The House that Jack Built", ele voltou a Dalsland, a mesma cidade gelada onde ele rodou cenas de "Dançando no Escuro", filme que lhe valeu a Palma de Ouro, em 2000.

Nesse excêntrico musical, a cantora Björk interpreta uma operária imigrante nos EUA que está em vias de ficar cega e luta para que o filho não padeça do mesmo mal.

"Dançando no Escuro" foi o primeiro longa de Von Trier depois de ele abandonar os ditames do Dogma 95, manifesto radical do qual foi um dos expoentes e que pregava um "voto de castidade" no cinema, sem artificialismos como trilha ou filtros ópticos.

Corta para 2017.

Von Trier insiste em fazer piada com nazismo: "Vocês sabiam que Bruno Ganz, que está no meu filme, já interpretou Hitler?", pergunta, citando o longa "A Queda" (2004).

Von Trier cogita lançar seu filme em maio de 2018, a tempo de tentar vaga em Cannes.

À reportagem a organização confirma que o cineasta poderá se candidatar se quiser.

Mesmo aconselhado a deixar toda a esperança para trás quando entrava no inferno, Dante chegou ao paraíso.


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