Folha de S. Paulo


Crítica

'Souvenir' dissipa vantagem com talento de Isabelle Huppert

Isabelle Huppert não é apenas uma das maiores estrelas do cinema europeu, ela é também, para o bem e para o mal, onipresente.

Sua produtividade faz com que ela seja vista num só ano em grandes filmes, como "Elle", em trabalhos pessoais, como "O que Está por Vir", e em historietas quase fajutas, como "Souvenir".

Divulgação
Isabelle Huppert vive dupla personagem Liliane/Laura em 'Souvenir
Isabelle Huppert vive dupla personagem Liliane/Laura em 'Souvenir'

A palavra francesa que dá título ao segundo longa do diretor belga Bavo Defurne significa "lembrar". Ela também designa, no vocabulário turístico, aqueles objetos muito cafonas que compramos por impulso numa viagem para depois escondermos, arrependidos, no armário.

As duas acepções se confundem na história de Liliane (Huppert), funcionária-padrão de uma indústria de alimentos. No ambiente asséptico em que trabalha, ela ordena os ingredientes, segue os procedimentos sem permitir que nada perturbe a lógica eficiente.

Essas imagens do mundo do trabalho se inspiram na da linha de produção de "Tempos Modernos", mas aqui não há um Chaplin a reinserir a humana anarquia nas coisas.

A entrada de Jean, um jovem boxeador, nesse universo é que provoca a mudança.

Ele identifica outra pessoa em Liliane, reconhece Laura, cantora glamorosa de outra era, relíquia perdida da música popular belga que um dia sumiu sem deixar rastros.

Jean conhece Laura por meio de seu pai, para quem a cantora dá corpo à ideia de mulher dos seus sonhos.

Essas duas existências agregam a parte mais saborosa de "Souvenir", alcançada graças à habilidade de Huppert para interpretar papéis que se confundem com sua imagem de atriz.

Em vez de mimetizar as personagens, Huppert diverte-se em fingir que estamos vendo ela mesma, cujo tipo, gestual e voz varia pouco de um filme a outro,só aumenta ou diminui de intensidade.

Aqui, a francesa pode ser Liliane ou Laura de acordo com o que se espera dela, sem nunca desaparecer sob a psicologia das personagens, como atua Catherine Deneuve e, antes delas, Bette Davis ou Ingrid Bergman faziam.

Tentar desvendar onde termina a personalidade dessas atrizes e começa a das personagens que interpretam é um dos principais estímulos ao prazer das plateias.

"Souvenir", no entanto, desperdiça essa vantagem inicial para se concentrar no romance novelesco entre Jean e Liliane, motivado pelo perfume nostálgico, mas atrapalhado pelo ressurgimento de vivências não resolvidas.

Nesse ponto, Laura se torna somente uma fantasia masculina, um joguete de desejos alheios e a personagem logo se desvanece.

Quando Defurne supõe que seu filme deve ser mais do que oportunidade para saborearmos as habilidades de Huppert, ele perde esse único trunfo e, junto, nosso interesse.

SOUVENIR
DIREÇÃO Bavo Defurne
ELENCO Isabelle Huppert, Kévin Azaïs
PRODUÇÃO Bélgica/Luxemburgo/França, 2016, 14 anos
QUANDO: Em cartaz


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