Folha de S. Paulo


Com obras de compositoras, concerto motiva debate sobre reconhecimento

Mozart, Schumann e Mendelssohn são nomes corriqueiros em qualquer repertório convencional de música clássica. Mas se, em vez de Wolfgang, Robert e Felix, eles vierem precedidos de Maria Anna, Clara e Fanny, já não podemos afirmar o mesmo.

Maria Anna Mozart (1751-1829), também conhecida como Anna Catharina ou Nannerl, excursionava com o irmão durante a infância, mas precisou limitar-se às tarefas domésticas quando adulta.

Fanny Mendelssohn (1805-1847) lapidou seu talento musical com o apoio de sua família para se apresentar e compor, tendo sido autora de mais de 400 obras, mas nunca pôde seguir a carreira profissionalmente, ao contrário de seu irmão mais novo.

Pianista virtuose, Clara Schumann (1819-1896) talvez tenha sido a mais reconhecida autora entre as três, tendo alimentado uma carreira de mais de seis décadas, ainda que seu nome permaneça à sombra do de seu marido.

Assim como elas, muitas compositoras foram ofuscadas ao longo da história da música, seja por costumes morais de suas épocas ou pelos reflexos remanescentes de uma cultura patriarcal.

Apenas o "International Encyclopedia of Women Composers" (enciclopédia internacional de compositoras mulheres) elenca em sua segunda edição, de 1987, mais de 6.000 autoras, vivas ou mortas, ocultas em 70 países.

O catálogo parece ser o único reduto em que elas figuram, já que os programas de grandes orquestras raramente contemplam suas obras.

Em 2016, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) executou apenas duas peças de compositoras ao longo de toda sua temporada anual –"Machine", da norte-americana Jennifer Higdon, uma das referências contemporâneas em composição, e "O Jardim", peça encomendada pela Fundação à brasileira Regina Porto.

Neste ano, a representatividade na programação principal é ainda menor e resume-se a dois concertos, para violino e para violoncelo, da compositora sul-coreana Unsuk Chin, em residência na casa.

Nesta quarta (8), no entanto, a primeira parte de um concerto especial em homenagem ao Dia da Mulher, que precede o início aos trabalhos anuais da orquestra, quebra os padrões e apresenta em sequência obras de três compositoras europeias.

Sob a batuta da regente em residência Valentina Peleggi, o Coro da Osesp executa "Morir Non Può il Mio Cuore", da italiana Maddalena Casulana (1544-1590), "Kyrie After Byrd", da inglesa Roxanna Panufnik, e "Hymme au Soleil", da francesa Lili Boulanger (1893-1918).

"A coisa triste a falar é que isso é provavelmente três [obras] a mais do que a maioria das orquestras tocam", diz a regente titular da Osesp, Marin Alsop, que, na continuação da apresentação, conduz a orquestra da casa em "Sinfonia nº 9 em Ré Menor", Op.125 de Ludwig van Beethoven (1770-1827).

Alsop sabe o que é ser exceção. Ela representa um número restrito de mulheres que assumiram cargos de poder sobre um grupo desse porte.

Ela recorda quando, aos nove anos, comunicou à sua professora de música que gostaria de ser regente, ao que ouviu: "Você é muito nova, e garotas não fazem isso".

"É questão de autoria e de autoridade; sem ter oportunidades, é muito difícil as mulheres crescerem em seus potenciais", diz a maestrina.

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OCULTAS

A busca por uma explicação à sub-representatividade feminina na música clássica levou a escritora britânica Anna Beer a destrinchar a vida de oito compositoras em "Sounds and Sweet Airs: The Forgotten Women of Classical Music" (as mulheres esquecidas da música clássica), lançado em 2016.

No livro, Beer explica que a criatividade era uma qualidade atribuída exclusivamente aos homens durante o século 16, período em que Maddalena Casulana tornava-se a primeira mulher a publicar uma composição.

A autora pontua ainda que, nesta época, um homem, ao ouvir o canto de freiras, chegou a defini-las como "espíritos angelicais" em corpos humanos, já que a habilidade excepcional dessas mulheres "contrariava a natureza".

A jornalista e pesquisadora Camila Frésca explica que, já nos séculos 18 e 19, a burguesia incentivava as mulheres a tocarem instrumentos e a cantar, assim como a bordar e aprender francês.

No entanto, ela diz, a prática musical ficava restrita ao ambiente domiciliar, fazendo com que as composições geradas nesse contexto fossem em sua maioria peças voltadas a grupos de câmara.

Isso explicaria por que, séculos depois, muitas dessas obras ainda não sejam tocadas por grandes orquestras.

Frésca, que ministrará a partir do dia 21/3 um curso no Sesc sobre a presença da mulher na música clássica, também aponta para a influência da tradição de composição, historicamente masculina.

"Se uma compositora escreve uma peça que não é tão legal, a justificativa é de que mulher não escreve bem", diz. "Se isso acontece com um homem, é personificado, diz-se que ele não compõe bem, mas não que os homens não servem para isso", conclui.

Tanto Alsop, quanto Frésca concordam que o enfoque em repertório contemporâneo poderia evidenciar o reconhecimento de compositoras. No entanto ambas apontam para a resistência do público como a principal barreira.

"Temos que convencer nosso público, dar o que eles querem, mas também empurrar um pouco do que queremos; é uma grande responsabilidade", diz Alsop.

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OSESP: CONCERTO ESPECIAL DO DIA DA MULHER
QUANDO qua. (8), às 21h
ONDE Sala São Paulo, praça Júlio Prestes, 16, tel. (11) 3367-9500
QUANTO De R$ 50 a R$ 100 (ingressos esgotados)


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