Folha de S. Paulo


Mercado da arte em NY abraça onda de arte inspirada por oposição a Trump

Uma enorme janela aberta na ponta do píer revela uma vista deslumbrante. "Dá para ver até a estátua da Liberdade", diz Ben Genocchio, diretor da Armory Show, que todo mês de março leva galerias do mundo todo ao cais do rio Hudson. "Queria mostrar a força desse lugar."

Esse lugar é Nova York. E Manhattan, tomada por grandes exposições ao longo desta primeira feira de arte depois que Donald Trump passou a viver na Casa Branca, parece se firmar como uma ilha de oposição -política e estética- ao presidente americano.

Em fevereiro, uma semana depois da tentativa do novo governo de barrar a imigração de cidadãos de sete países de maioria muçulmana, o MoMA trocou obras de Matisse, Picasso e outros mestres de sua galeria permanente por trabalhos de alguns artistas que não poderiam entrar nos Estados Unidos de Trump, entre eles a iraquiana Zaha Hadid.

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Retrato de Donald Trump realizado pelo artista Raymond Pettibon, agora no New Museum
Retrato de Donald Trump realizado pelo artista Raymond Pettibon, agora no New Museum

Na retrospectiva de Raymond Pettibon, um dos maiores arquitetos visuais da cultura punk, agora no New Museum, o presidente aparece em dois retratos. Num deles, está de costas, como "um certo Donald Trump". Noutro, surge diante da bandeira americana cheia de seus tuítes e grita "você está contratado", o contrário de seu célebre bordão no reality "O Aprendiz".

Mais sutil, o museu Whitney pendurou na sua entrada um neon de Glenn Ligon com a palavra "America" escrita ao contrário -as letras brancas ali também foram pintadas de preto, alusão à tensão racial no país e ao que seria um momento de retrocesso.

Essa América sombria e violenta, nas mãos dos artistas, vem rendendo obras e exposições cada vez mais panfletárias, como a da escola de design Parsons, que encheu sua galeria de mochilas e objetos pessoais encontrados ao lado dos corpos dos que morreram tentando entrar nos Estados Unidos pelo deserto de Sonora, na fronteira com o México.

Nas galerias comerciais, a onda anti-Trump surtiu até um efeito inesperado, servindo de antídoto à desconfiança que abala mercados em tempos de caos e incerteza.

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Obra de Miguel Ángel Ríos, exibida na feira Armory Show, em Nova York
Obra de Miguel Ángel Ríos, exibida na feira Armory Show, em Nova York

IRONIA TRÁGICA
"Todos estavam morrendo de medo do presidente, mas os ricos vivem melhor com Trump", diz Genocchio. "A ironia trágica disso tudo é que a Bolsa vem batendo recordes."

No mercado de arte, aliás, o efeito Trump desencadeou uma nova onda política, quando não ativista, que já se tornou commodity. É o último grito entre os colecionadores.

Na Armory, a Haines, uma galeria de San Francisco, imitou o gesto do MoMA e só levou ao estande artistas dos países que Trump tentou banir -entre eles a iraniana Monir Farmanfarmaian, famosa por esculturas resplandecentes, cheias de metal e espelhos.

"Tínhamos pensado nisso antes da eleição e, depois do que aconteceu, a ideia tomou uma dimensão maior", diz David Spalding, um dos diretores da Haines. "Não queremos forçar os artistas a fazer de suas obras uma denúncia política, mas estamos sentindo uma grande mudança social."

Mexicanos, reagindo à escalada da tensão por causa do muro de Trump, também articularam protestos. A galeria Sicardi, de Houston, por exemplo, mostrou trabalhos de Miguel Ángel Ríos, argentino radicado na Cidade do México, com frases como "nós não cruzamos a fronteira".

Outras galerias, como a OMR e a Hilario Galguera, da capital mexicana, também mostraram obras refletindo o calor do momento político, como as telas de Bosco Sodi, que parecem explosões sangrentas, e obras de José Dávila e Gabriel Rico em que objetos como placas de vidro, sapatos e vassouras estão arranjados em equilíbrio precário, quase a ponto de desabar.

Entre os americanos, David Kramer mostrou na galeria Laurent Godin, de Paris, uma série de pinturas ironizando os slogans de Trump, como "faça a América grande de novo", com fundos que lembram a bonança do pós-Guerra, de um prato de comida para micro-ondas a uma madame de cabelo armado, que dispensa o brunch do fim de semana.

Uma de suas telas é uma espécie de convite a conhecer só o andar térreo de um imponente arranha-céu no coração de Manhattan, algo como a Trump Tower, que continua vigiada por guardas armados com metralhadoras desde a eleição do novo presidente.

No fundo, o mundo da arte aqui se esforça para criar atrito entre duas visões de mundo, a da Nova York da estátua da Liberdade brilhando no horizonte de uma feira milionária e a metrópole da torre de marfim do novo inquilino da Casa Branca.

O jornalista viajou a convite da Armory Show.


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