Folha de S. Paulo


Documentos de Lou Reed são doados para Biblioteca Pública de Nova York

Depois que Laurie Anderson se recuperou do choque inicial da morte de seu marido Lou Reed, em 2013, ela tinha que decidir o que fazer com os arquivos dele —uma responsabilidade que Anderson descreve dizendo que "parecia que um edifício de 15 andares estava desabando em cima de mim".

O acervo de Reed é uma imensa coleção de papéis, fotografias e gravações —mais de 600 horas de fitas demo, shows gravados ao vivo e até leituras de poesia—, abarcando a maior parte da carreira de Reed. "Ele não disse uma palavra que fosse sobre o que fazer com tudo aquilo", afirma Anderson, e seu instinto inicial era simplesmente colocar todo o material online. Mas ela começou a procurar por uma instituição que pudesse oferecer manutenção adequada do acervo, e oferecer acesso público a ele.

"Eu não queria que as coisas desaparecessem em um arquivo que só pudesse ser visitado por pessoas de luvas brancas", disse Anderson em entrevista no seu escritório em TriBeCa, bem perto da casa em que vivia com Reed no West Village. "Queria que as pessoas pudessem ver o quadro todo".

Ela terminou por encontrar a instituição que buscava, a Biblioteca Pública de Nova York, que na quinta-feira (2) —dia em que Reed completaria 75 anos— anunciou a aquisição do Lou Reed Archive para sua divisão de artes performáticas. O conteúdo estará disponível para todos os visitantes da Biblioteca de Artes Performáticas, no Lincoln Center, assim que for catalogado, o que vai requerer pelo menos um ano.

A biblioteca se recusou a discutir os termos da aquisição, que se tornou o mais recente exemplo de tratamento literário de primeira linha para um ídolo do rock da geração baby boom [os norte-americanos nascidos entre 1946 e 1964], depois que os papéis de Bob Dylan foram para instituições do Oklahoma e Bruce Springsteen doou seus arquivos para a Monmouth University, em Nova Jersey.

Jonathan Hiam, curador da coleção de música e sons gravados da biblioteca, disse que o arquivo de Reed representa "uma grande afirmação de que encaramos esse tipo de música, música popular, como tão importante quanto tudo mais que colecionamos". Nas estantes de armazenagem da biblioteca, as fitas com as gravações de "Pale Blue Eyes" e "Sweet Jane", de Reed, dividirão espaço com os papéis do regente Arturo Toscanini e com um cacho dos cabelos de Beethoven.

Reed não era sentimental quanto ao seu passado, dizendo a colaboradores que havia destruído rascunhos de alguns de seus trabalhos a fim de manter o foco no produto final. Mas o arquivo, na forma legada a Anderson, continua a ser vasto, ocupando cem metros lineares de prateleiras.

O arquivo oferece vislumbres da vida de Reed como membro da elite cultural e como músico que sobreviveu com esforço. Uma carta de Martin Scorsese em 1993 fala sobre o elenco de um projeto de filme que terminou frustrado. Há uma troca de correspondência e elogios mútuos com Vaclav Havel, dramaturgo dissidente que se tornou presidente da República Tcheca, depois de ajudar a difundir o subversivo evangelho do Velvet Underground, o grupo de Reed, em seu país, na era soviética. Depois de uma visita a Praga em 1990, onde tocou com músicos tchecos que sabiam de cor as suas canções, Reed enviou um fax ao seu novo amigo dizendo que "eu jamais imaginaria uma cena como aquela, e a revejo sempre em minha mente".

Há também pilhas de documentos jurídicos e a contabilidade corriqueira de uma vida passada na estrada: um recibo de um club sandwich do Tokyo Hilton, um gravador comprado em uma loja de eletrônicos em Phoenix. Mas mesmo esses detalhes, disse Anderson, mostram um lado importante de Reed.

"A imagem das pessoas sobre Lou é a de um cara durão, de jaqueta de couro", ela disse. "Mas ao mesmo tempo, ele guardava os recibos e as notas fiscais de suas despesas nas turnês. Anotava tudo. Ele tinha essa maravilhosa capacidade de colocar e tirar a jaqueta de couro, e de fazer milhões de coisas ao mesmo tempo". Ela talvez seja a única pessoa a definir Reed como "a pessoa mais doce e terna que já conheci".

Também há letras, poemas inéditos e extensas anotações sobre tai chi, a paixão central de Reed em seus últimos anos de vida. Em alguns momentos, seu humor salta aos olhos, como quando ele assina cartas como "o cara mais 'cool' do planeta".

Mas por maior que seja, a coleção não é completa. Há pouca documentação sobre o período do Velvet Underground, e quase nenhum traço de sua convivência com Andy Warhol, o homem que ajudou a conceber a banda e foi seu primeiro empresário. Parte desse material pode ter sido perdido, ou fazer parte de coleções privadas. Em dezembro, a casa de leilões Sotheby's ofereceu seis páginas datilografadas de letras do Velvet Underground como parte do espólio de Donald Lyons, um dos integrantes da turma de Warhol na Factory, nos anos 1960; os documentos, de valor estimado em US$ 200 mil, não foram vendidos.

Mas o arquivo ainda assim terá valor para estudantes, pesquisadores e jornalistas, que nunca tiveram muito acesso aos papéis pessoais de Reed, disse Johan Kugelberg, curador e editor cuja coleção de material sobre o Velvet Underground, doada à Cornell University, era até agora o maior arquivo sobre Reed disponível em uma instituição.

"Todos os materiais que recolhi como fã, historiador e pesquisador desprovido de contato com a banda oferecem um aspecto desse trabalho", disse Kugelberg, que não participou da negociação com a Biblioteca. "Os materiais que Lou Reed guardou pessoalmente oferecem outro aspecto, muito mais importante."

O coração do arquivo e o material que provavelmente mais causará surpresa aos fãs e estudiosos é a coleção de áudio. Há cerca de 3,6 mil gravações em áudio e 1,3 mil em vídeo, em formatos que refletem a evolução da indústria da música ao longo de meio século, de fitas de rolo a cassetes, passando por fitas digitais e chegando a discos rígidos de computador.

As gravações remontam aos primeiros dias da carreira de Reed em Nova York, na metade dos anos 1960, quando ele estava montando a banda que se tornaria o Velvet Underground e trabalhando como compositor pago por uma gravadora de pequeno porte chamada Pickwick International. Uma fita o mostra interpretando uma versão reverente de "Don't Think Twice, It's All Right", canção que Bob Dylan compôs naquele período.

Há mistérios nas fitas. Um rolo de gravações do Velvet Underground contém anotações como "delicioso" e "energia", que podem ter sido escritas por Warhol, disse Don Fleming, arquivista contratado por Anderson para organizar o arquivo antes de sua entrega à biblioteca. E, em maio de 1965, Reed enviou a si mesmo pelo correio uma fita de rolo de cinco polegadas, talvez como tentativa de estabelecer prova de direito autoral; a caixa continua fechada, e não se sabe o que a fita contém.

Algumas partes do arquivo, como essa, "são um mistério", diz Fleming.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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