Folha de S. Paulo


Brasileira Christiane Jatahy leva 'A Regra do Jogo' à Comédie-Française

A Comédie-Française, mundialmente celebrada por perpetuar o repertório clássico da dramaturgia francesa, vem sendo sacudida pela arte de uma brasileira.

Desde o último dia 4, a diretora carioca Christiane Jatahy apresenta na sala Richelieu da secular instituição, ancorada no centro de Paris, o espetáculo "A Regra do Jogo", baseado no homônimo filme do francês Jean Renoir, de 1939, considerado uma obra-prima do cinema.

Sua criação já foi definida pela crítica francesa como um "miniterremoto" na casa de Molière, em uma adaptação cênica que mistura teatro e cinema, uma constante em sua obra, e adjetivada de "audaciosa", quebrando "todos os códigos e hábitos" da companhia teatral mais antiga do mundo, fundada em 1680 por decreto do rei Luís 14.

Bastante elogiada e requisitada pelos teatros da Europa nos últimos anos após a apresentação de sua mais recente trilogia ("Julia", "E se Elas Fossem para Moscou?" e "A Floresta que Anda"), Jatahy é o primeiro nome do Brasil a criar e dirigir uma peça na Comédie-Française.

"Não fiz pensando em algo para criar um 'miniterremoto', mas sim em um trabalho coerente com a minha linguagem e minha pesquisa na relação com o público", diz.

"E algo que entendesse que tinha a pertinência de se fazer hoje, em 2017, usando artisticamente minha percepção da Comédie-Française, como uma homenagem à memória da casa", explica a diretora, em um café nas proximidades do teatro.

O espetáculo começa com um filme de 26 minutos, exibido em uma tela que ocupa toda a face da cena, pré-gravado dentro e fora do teatro.

O cenário substitui a mansão rural do filme original de Renoir, onde ocorre a festa oferecida pelo marquês Robert de La Chesnaye, um burguês parisiense, para comemorar o recorde de travessia do Atlântico do aviador André Jurieux (Laurent Lafitte, que atua no filme "Elle").

No roteiro da brasileira, André se transforma em um navegador solitário que acaba salvando imigrantes no mar do Mediterrâneo. A jovem austríaca Christine, mulher do anfitrião, vira marroquina, interpretada por Suliane Brahim, única atriz de origem árabe da Comédie.

Já Édouard Schumacher, guarda-caça alemã da propriedade, vira um segurança na pele do ator negro de origem malinesa Bakary Sangaré.

Na parte teatral da peça, os atores interagem com o público; em um ambiente de cabaré, cantam clássicos da "chanson française", e o vídeo ao vivo se faz presente, inclusive com a câmera de um drone.

O filme de Renoir aborda as relações de classe em um clima belicoso às vésperas da Segunda Guerra Mundial.

Para Jatahy, o tema não perdeu atualidade: "São épocas diferentes, mas hoje estamos na mesma beirada do vulcão, à beira de guerras".

"A gente sabe o que aconteceu nos EUA, o que está se passando no Brasil e o que tem possibilidade de ocorrer na Europa", diz.

"Colocando as coisas novamente no seu tempo, é muito parecido. Há uma coisa retrógrada bastante violenta, um horror ao diferente e ao novo."

A diretora assume suas escolhas na Comédie: "Não se trata de quebrar uma janela, mas de abri-la para deixar o ar entrar. Acredito que o novo não ameace, ele possibilita rever o antigo", conclui.


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