Folha de S. Paulo


Como Nicole Kidman coloca as mulheres à frente em Hollywood

Na manhã seguinte à cerimônia do Globo de Ouro, na qual Meryl Streep fez seu apaixonado discurso contra Donald Trump, em um momento no qual as estrelas visitantes estavam devolvendo seus vestidos e se preparando para deixar a cidade, Nicole Kidman estava no escritório da HBO, fazendo uma última reunião antes de voltar a Nashville.

O tema era "Big Little Lies", minissérie em sete episódios que ela coproduziu e coestrelou com Reese Witherspoon, com estreia prevista para o dia 19 de fevereiro na HBO. Baseada no best-seller homônimo de Liane Moriarty, a série gira em torno de cinco mulheres —as três outras são interpretadas por Shailene Woodley, Zoe Kravitz e Laura Dern— de um bairro rico de Monterey, Califórnia, que serve como perfeito cenário para sátira social. Quando a história começa, uma guerra entre pais ameaça irromper por conta de um incidente desagradável na escola primária local.

O primeiro item da agenda era como promover "Big Little Lies" de maneira a refletir tanto o humor da série quanto seu aspecto dramático e até melodramático.

Mario Anzuoni/Reuters
Elenco de
Elenco de "Big Little Lies" durante a estreia da nova série da HBO

Uma campanha preliminar já estava em circulação. Anúncios foram publicados em revistas. Na avenida Sunset Boulevard, outdoors proclamavam que "é uma vida maravilhosa", com o "f" de life [vida], como que caindo da imagem, deixando a palavra "lie" [mentira]. Trailers enfatizando aspectos diferentes da história haviam começado a circular na televisão e na mídia digital.

Kidman disse que desejava garantir que a violência doméstica (talvez o mais sombrio tema da trama - sem considerar o homicídio, claro) recebesse a devida atenção pública e não ficasse perdida em meio aos exageros histriônicos. "Queremos mostrá-la da maneira certa, e instigar discussão sobre ela por conta da série", ela disse.

Len Amato, presidente da HBO, disse que encontrar o equilíbrio certo era difícil. "Se você vê apenas um pouco disso, pode ser uma experiência redutiva", e acrescentou que "não estamos repetindo 'Desperate Housewives', aqui. Nada contra 'Desperate Housewives', mas esse não era o ponto focal para que as pessoas quisessem fazer a série".

Kidman está participando de muitas reuniões parecidas, hoje em dia. Em 2010, sua produtora, a Blossom Films, foi responsável por "Reencontrando a Felicidade", um filme de baixo orçamento no qual ela interpreta uma mãe de luto pela morte do filho. O sucesso que surgiu foi inesperado. "Pensei que fazer algo assim era realmente possível", disse Kidman em entrevista mais tarde.

O filme abriu novas possibilidades para ela em um setor conhecido como nada hospitaleiro para com atrizes que tenham atingido a infortunada idade de 40 anos, mesmo que elas tenham conquistado o Oscar de melhor atriz (Kidman, 49, ficou com o prêmio por "As Horas", de 2003). Desde "Reencontrando a Felicidade", a Blossom produziu a comédia romântica "Monte Carlo" e o infeliz drama familiar "The Family Fang", e recentemente acelerou seu ritmo de aquisição de opções para a produção de livros e peças. Na Hollywood atual, a melhor maneira de interpretar papéis interessantes, ou de garantir que histórias complicadas sobre mulheres adultas cheguem às telas (de cinema ou TV) é assumir o controle criativo e financeiro dos projetos.

"Isso permitiu que eu direcionasse minha carreira, em termos de poder encontrar coisas que de outra forma talvez não me fossem oferecidas, ou que eu não teria a oportunidade de fazer", disse Kidman em entrevista depois da reunião.

Naquela segunda-feira de janeiro, Kidman estava no comando, embora se mostrasse relaxada e, em dados momentos, brincalhona (ao introduzir Per Saari, seu sócio na produtora, ela disse que os dois eram tão próximos que "estamos casados há 14 anos"). Usando uma calça azul marinho e uma impecável blusa branca, ela parecia mais alta em pessoa, e seu sotaque australiano surpreende, porque os sotaques não australianos que ela adota em seu trabalho são muito mais familiares para um espectador.

Kidman disse não ter um plano de carreira, e que se limita a buscar material que a interesse e a buscar diretores e roteiristas talentosos mas desconhecidos. A Blossom compra roteiros e paga adiantado, para minimizar o que Kidman define como "burocracia". Ela continua a atuar em projetos que não produz, e vice-versa. "Só faço coisas que me apaixonam", disse. "De outra forma, prefiro ficar em casa em Nashville e cuidar das minhas filhas e ser muito feliz", ela disse, em referência às duas filhas pequenas que tem com o marido, o cantor country Keith Urban.

No mês passado, Kidman se envolveu em uma briga quando uma declaração que ela fez à BBC sobre a necessidade de os norte-americanos se unirem em apoio ao novo presidente foi entendida como expressão de admiração ao presidente Donald Trump. Kidman disse mais tarde que estava "simplesmente tentando enfatizar que acredita na democracia e na constituição dos Estados Unidos".

Enquanto isso, ela mantém uma agenda sobrecarregada de trabalho como atriz. Em 2015, 17 anos depois de estrelar em "The Blue Room", Kidman voltou ao teatro, em Londres, para "Photograph 51", uma peça na qual ela interpreta a química britânica Rosalind Franklin, cujo trabalho nunca recebeu o apreço merecido. Seu trabalho lhe valeu o prêmio London Evening Standards como melhor atriz da temporada. Ainda este mês, ela descobrirá se ganhou um Oscar como atriz coadjuvante por seu papel como mãe adotiva de um menino indiano perdido no filme "Lion - Uma Jornada para Casa".

No ano passado, ela trabalhou em "O Estranho que Nós Amamos", um western passado na época da guerra civil dos Estados Unidos e dirigido por Sofia Coppola, e "The Killing of the Sacred Deer", seu filme mais recente, que está em pós-produção, um projeto dirigido pelo cineasta Yorgos Lanthimos, de "O Lagosta".

"Sinto estar em um lugar muito seguro em minha vida agora, um lugar em que me sinto muito mais confortável comigo mesma e posso ser mais extrovertida", ela disse. "Também significa que posso trabalhar com pessoas de que gosto".

Faz sentido que "Big Little Lies" tenha se tornado uma série da HBO no lugar de um filme de um grande estúdio. Já que filmes sobre super-heróis e outras grandes produções dominam a escala de lançamentos dos grandes estúdios, astros de cinema de primeira grandeza como Natalie Portman, Daniel Craig e Bradley Cooper estão levando seus projetos a empresas como a HBO, Showtime, Amazon e Netflix.

"Não existe mais uma separação tão grande", disse Witherspoon em entrevista por telefone. "O espaço para trabalho agora é maior, a base de talentos muito maior, e as coisas se tornaram menos definidas - o que é televisão, o que é um filme?"

Apenas 30 meses se passaram entre a concepção do projeto e sua conclusão. No segundo trimestre de 2014, Bruna Pappandrea, antiga sócia de Witherspoon em sua produtora (Pacific Standard) e também amiga de Kidman, leu as provas de "Big Little Lies" ainda antes da publicação do livro, gostou muito da história e ligou para Witherspoon, que estava em em Nova Orleans filmando "Belas e Perseguidas". Encantada com o livro, Witherspoon procurou Kidman, sua velha amiga, e pediu que ela o lesse.

Kidman disse que se sentiu atraída pelos diferentes climas do livro, pelos personagens femininos fortes e que "embora boa parte dele trate de mulheres que estão brigando, tentando se destruir, o livro também é sobre a amizade". O personagem que ela interpreta, Celeste, parece ter uma vida perfeita, o que inclui um marido sarado e mais jovem, interpretado por Alexander Skarsgard, mas é tudo uma fachada que começa a se desfazer com o avanço da série.

Ela ligou para Witherspoon ao terminar a leitura e disse "estou nessa, se você também estiver". Kidman recorda que a amiga respondeu "estou nessa. Agora temos só de garantir o livro". Isso significava persuadir a autora, Moriarty, que é australiana, a lhes vender os direitos exclusivos sobre o projeto.

Kidman estava a caminho da Austrália, de férias, e ela e Moriarty se encontraram em um café em Sydney. "Opções sobre alguns dos meus outros livros já haviam sido adquiridas, e amigos escritores me aconselharam a só me empolgar quando a filmagem começasse", ela disse, por telefone. "Mas Nicole disse que, se ela adquirisse uma opção, eu deveria me empolgar, porque ela não adquire opções só pelo prazer de tê-las".

Witherspoon então convocou Jean-Marc Vallee, que a dirigiu em "Livre" - "e então Reese mandou um e-mail a Jean-Marc", é como Kidman descreve a situação, e as duas contrataram David Kelley ("Ally McBeal", "The Practice") para escrever o roteiro.

No começo, elas não estavam certas sobre que rede de TV seria o lar ideal para a ideia. Mas Kidman já havia trabalhado com a HBO, quando estrelou "Hemingway and Gelhorn". "Sabia o que eles tinham a oferecer em termos de permitir que um projeto crescesse e se desenvolvesse", ela disse.

O que veio a seguir foi uma onda de networking entre mulheres que Kidman comparou à maneira pela qual os amigos e astros de cinema envolvidos com a série de filmes "Onze Homens e um Segredo" conduzem seus negócios. Ela e Witherspoon começaram a contatar amigas. "Quando Reese e eu decidimos ir adiante, não demoramos a convencer Shai Woodley. "Ela aceitou porque Laura Dern, uma de suas melhores amigas, topou o projeto e disse que a convenceria", conta Kidman.

A experiência foi tão compensadora que sua produtora e a de Witherspoon adquiriram uma opção sobre o mais recente livro de Moriarty ("Truly Madly Guilty"), no ano passado. A produtora de Kidman também adquiriu uma opção sobre "The Expatriates", que ela diz conter "três papéis maravilhosos para mulheres" e se passa em Hong Kong.

Kidman também está trabalhando com a HBO na dramatização de outro romance para o qual ela adquiriu uma opção de adaptação, "Reconstructing Amelia", sobre uma mãe que tenta descobrir por que sua filha se suicidou. (Naomi Watts está negociando para interpretar o papel principal, disse Amato.) Kidman disse que sua intuição é de que o projeto deveria ser um filme e não uma minissérie, e a HBO parece aceitar a ideia. "O balanço de como você faz essas coisas é delicado", disse Kidman, sobre decidir entre produzir uma série ou um filme.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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