Folha de S. Paulo


Crítica

Em 'Parque Cultural', autor joga com o mito de Aleksándr Púchkin

PARQUE CULTURAL (ótimo)
AUTOR Serguei Dovlátov
TRADUÇÃO e prefácio Yulia Mikaelyan
EDITORA Kalinka
QUANTO: R$ 45 (168 págs.)

Furio Jesi (1941-1980), mitólogo italiano, diz que o mito "não é uma forma de conhecimento, uma vez que aquilo que distingue as formas de conhecimento é a transcendência do objeto conhecido ou, pelo menos, a transferência, diante do objeto a ser conhecido, a algo que o transcenda". E acrescenta: "O mito é desprovido de toda transcendência, é um operar por palavras ou por imagens".

Portanto o mito é uma ação por meio de palavras e imagens. A partir de tal reflexão poderíamos ler o romance "Parque Cultural", de Serguei Dovlátov (1941-1990), visto que o mito ali presente, sem nenhuma marca transcendental, é o de Aleksándr Púchkin (1799-1837).

No livro, escrito em 1983, Dovlátov coloca em cena o mito de Púchkin com o objetivo de ler sua história a contrapelo. Desse modo, desconstrói o mito soviético inteiramente enraizado, evidenciando ironicamente que todo mito pode estar destinado a ruínas, assim como pode emergir das ruínas.

A.Sverd lov/ImageForum/Reprodução
ORG XMIT: 063701_0.tif Retrato de Alexander Púchkin, cuja obra,
Desenho de 1831 de Alexander Púchkin, que tem mito posto sob escrutínio em livro

As imagens que provêm de tal leitura a contrapelo, portanto, trazem marcas informes da sobrevivência do passado no presente.

Em 1922, na região da antiga propriedade de Púchkin, Mikháilovskoie-Trigórskoie, é erguido um parque-museu em sua homenagem.

Há, no entanto um fato curioso, destacado por Yulia Mikaelyan no prefácio à edição: "Na verdade, a casa que pertencera ao poeta fora demolida ainda em 1860 por seu filho Grigóri e, em seu lugar, fora construída outra, com uma arquitetura distinta". Isto é, o grande símbolo do mito não é senão um simulacro do próprio mito.

Em "Parque Cultural", o protagonista, o escritor Boris Alikhánov ("alter ego" de Dovlátov), vive suas experiências como guia no complexo histórico das Colinas de Púchkin, onde questiona o mito por meio de reminiscências, visto que o fluxo do mito consiste na insurgência de um passado remoto numa espécie de eterno presente.

Num diálogo entre Viktória Albiértovna e Boris Alikhánov, lemos:

"–Posso fazer uma pergunta? Quais objetos expostos no museu são autênticos? / –Será que isso é importante? / –Acho que sim. Pois um museu não é um teatro. / –Aqui tudo é autêntico. O rio, as colinas e as árvores são contemporâneos de Púchkin. [...] / –Estou me referindo às peças do museu. [...] / –Pertences de Púchkin?..."

Em "Parque Cultural" há muitos fatos relacionados à vida de Dovlátov. Porém, como bem ressalta a tradutora, "esse aspecto documental é ilusório: seu gênero é a ficção". O romance é, portanto, a esfera de um mundo permeado de ambivalências.

O escritor Lev Lóssev relembra que Dovlátov adorava dizer: "Sinto um orgulho especial quando me perguntam: 'E isso aconteceu de verdade?', ou quando meus parentes esclarecem meus contos e especificam os fatos segundo suas próprias lembranças. Isso significa que tomam minhas invencionices por realidade".

Em última análise, Dovlátov, como guia-dissidente em "Parque Cultural", nos relembra que na origem e no fim da literatura há o mito.


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