Folha de S. Paulo


Crítica

Biografia de Clementina de Jesus é incontornável, mas contém falhas

QUELÉ - A VOZ DA COR (muito bom)
AUTORES Felipe Castro, Janaína Marquesini, Luana Costa e Raquel Munhoz
EDITORA Civilização Brasileira
QUANTO: R$ 49,90 (384 págs.)

Para que uma biografia seja boa, recomenda-se que o biografado tenha morrido há algum tempo. Seu valor histórico está consolidado, e os entrevistados estão à vontade para falar.

Trinta anos é tempo de sobra. No caso de Clementina de Jesus, morta em 1987, nenhum jornalista experiente ainda tinha se dedicado a ela.

Coube a quatro jovens assumir a missão quando ainda eram universitários. Não sucumbiram às dificuldades que cercam a história de uma pessoa tão representativa da cultura oral.

O primeiro grande mérito de "Quelé - A Voz da Cor" está aí: recuperar, tanto quanto possível, a primeira fase da vida de Clementina –inclusive a certidão de batismo, que aponta 1901 como data de nascimento (e não 1902, como ainda se escreve).

É o período fundamental para entender seu conhecimento das manifestações afro-brasileiras, a começar pelos cantos de trabalho, ela que era neta de africanos escravizados. E que se dizia católica "misseira", o que só a engrandece como divulgadora de jongos e pontos de macumba que teriam se perdido caso fosse intolerante.

O segundo mérito está em apresentar, de forma minuciosa, a trajetória de Clementina. Os autores se apoiaram em documentos e material de imprensa, não se contentando apenas com entrevistas.

Mas não se aplica ao livro o clichê "biografia definitiva". A inexperiência do quarteto pedia um cuidado que a editora não deu.

Além de problemas de estilo, há erros de digitação ou atenção (Albino Pé Grande, marido da cantora, não morreu em 1967, mas em 1977, como está na cronologia ao final do volume) e de informação –isolados (Wilson Batista nunca foi "bamba do Estácio") ou repetidos ("Pelo Telefone" não foi o primeiro samba gravado, mas a primeira música registrada como samba a fazer sucesso).

Há ainda um excesso de Hermínio Bello de Carvalho.

O compositor e produtor descobriu Clementina para a carreira profissional quando ela já tinha 63 anos, e a ele a música brasileira deve isso e muitas outras coisas. Mas há momentos em que ele se torna o protagonista, fruto do compreensível encantamento que despertou nos autores.

São males menores. Nada que se diga ou se escreva sobre ela daqui para frente poderá contornar o trabalho dos quatro jovens jornalistas.

Quelé, A Voz Da Cor: Biografia De Clementina De Jesus
Felipe Castro, Janaína Marquesini, Luana Costa
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A biografia assinala o papel da cantora como guardiã e transmissora da cultura dos africanos escravizados, a maior riqueza cultural brasileira. E mostra como, mesmo ganhando fama, ela continuou sendo explorada, não fugindo ao que o país reserva à maioria dos negros pobres.


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