Folha de S. Paulo


Tubarões assolam filme com Fernanda Montenegro e Cauã Reymond

Bárbara Cunha/Divulgação
Fernanda Montenegro e Cauã Reymond em cena de 'Piedade', novo filme de Cláudio Assis
Fernanda Montenegro e Cauã Reymond em cena de 'Piedade', novo filme de Cláudio Assis

Os avisos de "perigo: área de ataque de tubarão", que atulham a praia de Boa Viagem, no Recife, não pouparam um surfista de 21 anos de ter a mão mordida pelo que, segundo ele, era um filhote de cação, em 24 de janeiro.

Seis dias depois, os tubarões voltariam a assolar o litoral pernambucano, agora no set de "Piedade", novo filme de Cláudio Assis e que marca o retorno do diretor ao mesmo universo sórdido de longas como "Amarelo Manga" (2002) e "A Febre do Rato" (2011).

Os predadores cartilaginosos, que serpenteiam pelo cinema trash desde que Spielberg os botou em cena, encontram no filme de Assis uma redenção. E servem como canal para o libelo da vez do diretor.

O longa, que conta com Fernanda Montenegro, Cauã Reymond, Irandhir Santos e Matheus Nachtergaele no elenco, deve ser lançado em 2018.

"Esse é o único filme em que o tubarão é vítima, e não o vilão", diz o cineasta. "Na vida real, quando ele vê a perninha de alguém balançando, ele morde porque os peixes que comia sumiram", diz.

Assis se refere ao porto de Suape, que fica a 13 quilômetros do set e de onde a história é ambientada. Biólogos costumam atribuir o aumento dos ataques na orla do Grande Recife à construção do complexo industrial, a partir dos anos 1980, que teria alterado a rota dos cardumes.

Em "Piedade", Fernanda Montenegro faz uma matriarca e dona de um bar na praia que dá nome ao filme. Seu modo de vida e o do filho (Irandhir Santos) é ameaçado pela Petrogreen, petroleira que se instalou ali, lesou a pesca e fez multiplicar os ataques de tubarões na região.

Matheus Nachtergaele faz o representante da empresa, o "tubarão do capital" que tumultuará a vida daquela família e também a de Sandro (Cauã Reymond), um homossexual trintão e pai do ativista vivido por Gabriel Leone.

À Folha, Fernanda diz que admirava a "qualidade insólita" dos outros longas de Assis.

"Ele é um diretor não decodificado segundo a linguagem tradicional do cinema", afirma a atriz, que notou tom "glauberiano" nos diálogos de "Piedade". "Ele se permite uma realidade alucinada, mas com os pés na terra."

Ela diz que gostou do vasto uso de planos-sequência (filmagens sem cortes). "Sou mulher de palco. A câmera que entre no jogo." E do tema do longa: "O fato de o tubarão ser o herói da história é um pouco como nós neste país."

Cauã conta que estava em Portugal quando recebeu uma ligação de Cláudio Assis. Do outro lado da linha: "Não quero que você leia o roteiro. Quero saber se quer fazer meu filme, porra". Aos 36, ganhou um papel que diz "subverter" sua imagem. "Adorei. É gay, pai de um menino de 19, e com um histórico de rejeição", diz o ator, que foi visitar cinemas pornô –seu personagem é dono de um.

Como um executivo, Nachtergaele também destoará do que o público está acostumado. "É raro me darem um burguês. Um ator mais bonito ou menos torto que eu talvez deixasse o personagem limpo. Comigo, vai ficar doentio."

'CLÁUDIO ALLEN'

Na última segunda (30), a reportagem acompanhou as filmagens de uma cena com Gabriel Leone na Reserva do Paiva, ao sul do Recife –um conjunto de condomínios de luxo e centro empresarial que ficou praticamente às moscas depois da crise econômica.

Próximo a um estande de vendas da Odebrecht com ares de abandonado, Leone vestia máscara de tubarão e se esforçava no sotaque pernambucano: "O óleo de vocês tem o sangue da nossa gente", gritava com o personagem do presidente da petroleira.

A história do assédio do capital sobre o universo do indivíduo tem ecos na resistência da personagem de Sonia Braga contra uma construtora em "Aquarius". Assis, contudo, logo repele a comparação com a obra do conterrâneo Kleber Mendonça Filho.

"Não, senhor", interrompe de pronto. "Meu filme não é só sobre a questão imobiliária. É algo maior. Estou falando de amor, de família, sexo. Lógico que estão entrelaçados, mas o universo é outro."

Um universo que, segundo Nachtergaele, parceiro em todos os cinco longas do cineasta, continua preservando o mesmo "naturalismo investigativo" que o ator encontra na obra literária de Aluísio Azevedo, de "O Cortiço".

A menção a Azevedo faz algum sentido: Assis é um cineasta que esmiúça a pele e que filma seus atores detidamente, como se quisesse traduzir seus cheiros e texturas.

"Cinema é arte do corpo", diz o diretor, que desconversa sobre possíveis cenas de sexo entre os personagens de Cauã e Nachtergaele: "Não sei de nada disso. É o filme que vai pedindo aos poucos."

Por enquanto, o filme tem pedido mais "peso nos diálogos do que na carne", diz Nachtergaele -é tanto diálogo que o diretor ganhou o apelido no set de "Cláudio Allen", troça com Woody Allen.

O cineasta de Caruaru (PE) se permite alguma divagação, como o seu colega nova-iorquino. "Quando o tubarão vaga por aí, errante, esbarrando nas pessoas, é a natureza cobrando o homem de volta."

Desde 1992, quando o porto de Suape já operava plenamente e o governo de Pernambuco passou a contabilizar os ataques de tubarão, foram 61 os registrados no Estado; 24 acabaram em morte.


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