Folha de S. Paulo


análise

Documentário conta história do país por meio da pornochanchada

Divulgação
HISTORIAS QUE NOSSO CINEMA (NÃO) CONTAVA Direção: Fernanda Pessoa Documentário, Cor, Digital, 79min, 2017, SP Faixa etária sugerida: a partir de 16 anos. Sinopse: Uma releitura histórica da ditadura militar no Brasil, com ênfase nos anos 1970, através apenas de imagens e sons de filmes da chamada pornochanchada, o gênero mais visto e produzido no período. Empresa Produtora: Studio Riff e Pessoa Produções ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Cena de 'Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava', documentário dirigido por Fernanda Pessoa

Para um festival que se orgulha de ter chegado aos 20 anos apontando tendências e caminhos novos para o cinema, não deixa de ser uma surpresa: "Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava" não aponta para o futuro, mas para o passado. Não faz o elogio do cinema de autor, mas daquilo que de mais comercial aconteceu nos filmes brasileiros do século passado: a dita pornochanchada.

O filme de Fernanda Pessoa enfrenta o risco de todo filme de montagem (o da ressignificação) com altivez: trata-se de mostrar como nossos filmes (comerciais) construíram, sim, uma história do Brasil entre os anos 1960 e 1980.

Como se sabe, a "pornochanchada" sempre foi tida como diversão escapista e, não raro, de existir incentivada pela ditadura a fim de distrair as plateias etc. etc.

O que a diretora deste filme encontrou nos fragmentos que encontrou e associou –até onde sei de maneira inédita– é coisa de outra ordem: elementos dispersos, porém preciosos, de uma história do Brasil jamais escrita.

Não que os elementos ali encontrados sejam tão diferentes do que se possa ler nos livros. Não é isso. Trata-se de ver como uma classe social e culturalmente inferior observou esse período. Como viam os ricos, por exemplo? Eis o que aparece com clareza em "Gente Fina É Outra Coisa", de Antonio Calmon.

Esse é um detalhe. Desde os anos 1960 pode-se perceber o tipo de reação provocado por coisas como o golpe de 1964: a percepção de entreguismo, o uso de personagens com forte sotaque americano (ou seja: os americanos tomando conta do Brasil).

Seguem-se os anos 1970, e o chamado "milagre brasileiro" aparece: o gosto do consumo, os automóveis associados à ideia de prazer, o culto da velocidade, o mundo dos negócios. Mas, ao mesmo tempo: a tortura, a violência policial, a violência.

Logo depois, o clima se altera: comparecem a crise do petróleo e suas decorrências: inflação, desemprego, quebra da bolsa. Greves. Não as greves do ABC. Mas uma greve num bordel, em um filme de David Cardoso.

Logo entram em cena também os conflitos geracionais. E morais. Uma mulher insiste em abortar: o feminismo está em cena, tanto quanto a ideia de viver à margem (hippies), maconha, arrivismo.

Com a crise econômica e a estagnação que já se anunciam as ênfases deslocam-se: moralidade, feminismo, desemprego e inflação entram em cena.

Claro, há uma constante: os negócios da classe privilegiada são sempre escusos, quando não francamente sujos.

"Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava" traz no título toda a ambiguidade da proposta: trazer à luz uma história que inconscientemente se acomodou nos filmes, mas, ao mesmo tempo, histórias (e mesmo uma inteligência) que não conseguimos detectar (o preconceito cega) nesses filmes.

Se já se pode afirmá-lo como um dos acontecimentos mais significativos deste ano no ramo das artes, "Histórias..." chama a atenção para a necessidade urgente de uma política de preservação dos filmes no Brasil: uma parte mais que considerável do material encontra-se em um estado de conservação tão deplorável quanto, o filme de Fernanda Pessoa vem demonstrar, imerecido.


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