Folha de S. Paulo


OPINIÃO

Com elenco de estrelas, 'Beleza Oculta' tenta ensinar pela dor

Quando vemos atores como Helen Mirren, Will Smith, Kate Winslet e Keira Knightley em um único filme, ainda por cima com uma temática centrada em como reencontrar o seu caminho após uma terrível tragédia, a expectativa é enorme.

O filme "Beleza Oculta" estreou nos EUA antes do Natal, imagino que para dominar o mercado, competindo até com o "Rogue One", o novo capítulo de "Star Wars".

O resultado foi desastroso. Críticos caíram em cima do filme, considerando-o uma total perda de tempo e de talento. Adjetivos do tipo "manipulativo", "banal", "clichê", "desonesto" foram usados em profusão. Ao menos aqui, e apesar dos excelentes atores, o filme afundou. Não discordo dos críticos, mas acho interessante analisar o porquê da reação virulenta.

O filme trata da perda duma criança amada. Howard, alto executivo da indústria de propaganda, brilhante, bem-sucedido, charmoso, perde sua filha de seis anos.

Divulgação
Beleza oculta [Collateral beauty, Estados Unidos, 2016], de David Frankel (Warner). Gênero: comédia dramática. Elenco: Will Smith, Kate Winslet, Keira Knightley ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Will Smith é o executivo Howard, que perde a filha de seis anos em 'Beleza Oculta'

Com ela, perde a vontade de viver, a capacidade de amar e de se relacionar com outros seres humanos. Em seu desespero, envia cartas para a Morte, o Tempo e o Amor. "Eles" respondem.

Filmado no Natal, em Nova York, talvez o filme tenha na fotografia sua melhor. Nem a música se salva.

Fica a narrativa. O triângulo Amor-Tempo-Morte define, em grande parte, nossa existência. A expectativa do que o filme tem a nos dizer cresce. Em um dado momento, o Tempo se refere à Teoria da Relatividade de Einstein, dizendo que o tempo é uma ilusão. Grande bobagem, ao menos dentro de uma perspectiva humanística. (E mesmo científica. A passagem do tempo é irrefutável. O que Einstein oferece é uma reinterpretação do tempo, não sua não existência.)

O tempo é tudo, a ponte entre o amor e a morte. É nele que depositamos nossa esperança de um futuro melhor. O amor pode ser o porquê de nossa existência, mas é no tempo que ele se desenrola e ganha significado.

A mensagem central do filme parece ser algo como "o tempo é um luxo que temos e que desperdiçamos", ao jogarmos a vida fora em trivialidades. Difícil reconciliar essa lição com a perda devastadora de uma filhinha.

O filme falha ao tentar contrapor a questão do que fazer com a vida que temos com a perda de uma criança, algo que existe fora do tempo: quando ocorre, a perda é solidificada como numa fotografia, imóvel, irrefutável, irreconciliável com qualquer expectativa de justiça, divina ou não.

Os mecanismos que a sociedade oferece para a reconciliação com a perda não eliminam, ou podem eliminar, o que existe fora do tempo. A dor da perda existe enquanto as pessoas que perderam existirem. Não há uma "cura". O roteiro até fala isso, mas de forma atrapalhada e formulista.

Com o triângulo Amor-Morte-Tempo e um superelenco, esperamos insights geniais, revelações existenciais profundas, algo que possamos levar conosco para casa, para dividir com amigos, para aplicar em nossas próprias vidas, para nos reinventar.

Mas aprendemos que Amor é criação, Morte é destruição e Tempo é o que ocorre entre os dois, algo que, francamente, parece profundamente equivocado, algo que leríamos num desses cartões com mensagem pronta, repletos de "sabedoria" popular.

A reação dos críticos é mais uma reação de frustração e desapontamento, dada a expectativa que um filme com tanto potencial se afoga em platitudes vazias.

O que se salva é que a própria inviabilidade do enredo nos faz pensar sobre as perdas que sofremos e de como lidamos (ou não) com elas.

MARCELO GLEISER é professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, EUA. Seu livro mais recente é 'A Simples Beleza do Inesperado'.


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