Folha de S. Paulo


'OS não é privatização', diz Charles Cosac, à frente da Mário de Andrade

De estagiário a diretor, com uma ligação. A carreira de Charles Cosac, 52, um dos maiores editores do Brasil, mudou há pouco mais de duas semanas, quando André Sturm lhe telefonou.

Cosac, fundador da editora Cosac&Naify -cujas atividades ele decidiu encerrar em novembro de 2015, após quase 20 anos-, estava fazendo um estágio no cinema Belas Artes, de propriedade de Sturm, quando o chefe foi convidado a assumir a Secretaria Municipal de Cultura.

Dias depois, Sturm o convidou para dirigir a maior biblioteca pública da cidade, a Mário de Andrade (BMA).

Marcus Leoni/Folhapress
Charles Cosac em sua sala na Biblioteca Mário de Andrade, que passou a dirigir
Charles Cosac em sua sala na Biblioteca Mário de Andrade, que passou a dirigir

Cosac disse sim de imediato. Uma semana após assumir o cargo, ele afirma que o órgão continuará aberto 24 horas por dia, ao contrário de declarações dadas por Sturm.

Após dar de cara com uma morosidade que classifica como "feroz", ele passou a defender a bandeira da gestão Doria de que a Mário de Andrade poderia ser mais bem administrada por uma OS, ou uma organização social, entidade de direito privado sem fins lucrativos que administra equipamento público.

Ao menos no espaço ao seu redor, Cosac já começou a imprimir sua marca: uma escultura de são Miguel Arcanjo, seu santo protetor, pisa sobre o torso de um infante, que simboliza o mal, sobre a mesa da sala da diretoria, onde recebeu a Folha para uma entrevista. Leia trechos a seguir.

*

Folha - Como foi a primeira semana à frente da biblioteca?
Charles Cosac - Estou atendendo as várias empresas de limpeza e de segurança que prestam serviço aqui. Tem a questão da brigada dos bombeiros. São todos aspectos mais administrativos. A programação cultural ainda não foi feita.

Quais são as primeiras questões com que se deparou?
Tem a questão dos guarda-volumes, que não são suficientes. A gente não tem cadeira. Mesas que poderiam ser ocupadas por quatro pessoas são ocupadas por duas.

É um quadro bem complexo. É uma biblioteca e é também um museu, que precisa zelar pelo próprio acervo.

A gente tem uma vontade de nunca dizer não. É um desejo da equipe, e meu também, atender as pessoas.

A biblioteca vai deixar de funcionar 24 horas por dia, como disse o secretário Sturm?
Por enquanto, a biblioteca continua funcionando 24 horas por dia. Mas eu preciso defender esse funcionamento 24 horas.

É uma questão matemática: incorre em custos para a Biblioteca Mário de Andrade. Como esses recursos poderiam ser realocados em áreas mais carentes? Temos problema de manutenção, fungos, preservação. A gente não tem um belo sistema de refrigeração e condicionamento. Muitas janelas não podem ser abertas.

Estamos fazendo um dossiê. Grande parte da biblioteca foi fotografada.

Eu teria de defender essas 24 horas numericamente. Existem alternativas. O atendimento automático pode ficar aberto 24 horas. Ou parte da biblioteca. Temos de estudar essas alternativas.

Até quando dura esse 'por enquanto'?
Não poderia dizer, não há data.

Como foi a acolhida que recebeu dos funcionários?
Eu me senti muito bem acolhido. Existe a questão de eu não ser bibliotecário. Agora, eu só senti isso na reunião com as outras 52 bibliotecas da cidade. Como esta é a maior, ela seria a biblioteca modelo.

Existe um grande diálogo entre as bibliotecas: trocas de livros, permutas, doações.

A questão é que eu acho que esses 52 diretores são bibliotecários. Eu não.

Quanto tempo pensou antes de aceitar o convite?
Eu não pensei. Não refleti. Ele fez o convite e eu aceitei.

Você estava trabalhando para o secretário André Sturm no Belas Artes antes de vir para cá. O que fazia lá?
Muitas coisas, era muito legal. A gente estava pensando em reelaborar algumas coisas. Eu fazia algumas traduções, de francês e inglês. É um trabalho muito prosaico, que me acalma. Esses filmes iranianos, esses filmes que vêm de Paris. Traduzia ficha técnica, "releases".

O universo do cinema é fascinante. Tem projetos em andamento para o Belas Artes atuar também como teatro e como local de música.

Você era estagiário?
Sim, era um estágio. Era uma coisa informal. Não tinha carteira assinada.

A gestão anterior havia lhe convidado a fazer uma exposição de artes aqui. Vai haver um foco também nas artes plásticas?
Eu tinha sido convidado a fazer uma exposição na parte de gravuras da biblioteca. Tem boas promessas de melhorar ainda o acervo. Artistas já me disseram que vão doar obras. Fazer um pedido para a Mário de Andrade é fácil. As obras vão ser adicionadas ao acervo, e a gente espera eventualmente expor. Tem muitas questões de arquitetura, paredes de mármore que não podem ser usadas.

O professor Luiz Armando Bagolin, ex-diretor da BMA, disse temer que a falta de transição entre as duas gestões fosse colocar em risco um programa de digitalização de acervo que já teria tido financiamento, de R$ 10 milhões, aprovado pelo BNDES. Ele será levado adiante?
Ele vai ser continuado. Estamos inclusive em contato com a Biblioteca [Brasiliana Guita e José] Mindlin, que já tem um acordo com o BNDES. Eles vão nos ajudar na troca de experiências. A ideia é digitalizar o acervo, não há dúvida. Mas é importante definir o que estamos digitalizando

O que será priorizado?
Os periódicos mais frágeis e livros raros. Mas, pelo que aprendi em seis dias de Biblioteca Mário de Andrade, o critério é temático. Não é por data. Você cria um tema e digitaliza tudo o que ele engloba. O ideal seria começar com cem anos de modernismo. Estou muito feliz de dar continuidade a esse projeto. Há problemas localizados que devem ser enfrentados.

Qual legado gostaria de deixar para a biblioteca?
Eu me sentiria muito, mas muito, muito glorioso se conseguisse resolver problemas de circulação de ar. É um calor horroroso. Aquele corredor de vidro é inadequado. Preciso conversar com o Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] para saber como isso foi permitido. É uma estufa. Até pensei em fazer uma exposição de orquídeas ali, está nos meus planos. É a única coisa que posso fazer lá, além de reclamar. Os funcionários ficam lá oito horas por dia. As queixas são generalizadas.

Como era sua relação com a biblioteca até agora?
A Cosac Naify doava livros, o que não era a regra, a maior parte das editoras vende livros para cá. Em 2016 não houve nenhuma aquisição, o ano passou a base de doações.

A documentação que a prefeitura exige de editoras para comprar livros é muito severa. Isso impede.

O que ocorre é que acabamos comprando livros de distribuidores ou de editoras que têm os papéis em dia, que são poucas.

A biblioteca também tem uma relação muito próxima com a Companhia das Letras.

Há planos de retomar a compra de livros?
A gente não pode não comprar livros. É impossível. A gente vai ter que criar essa rede de aquisição, de doação, passar o chapéu e falar com as editoras. A gente tem de ser referência, ter tudo, não pode emprestar livros de outras bibliotecas. Tem de ser ao contrário.

Qual é a maior crise da BMA?
Existe o problema da liberação do trabalho voluntário. O secretário André Sturm está providenciando isso para a Secretaria Municipal de Cultura.

Há pessoas que querem trabalhar como voluntários aqui, mas não podem. Isso vai ser um grande alívio. Há 93 pessoas trabalhando aqui. Seis vão se aposentar neste ano e não serão substituídas. O alívio do trabalho voluntário é emergencial.

Como é ter um chefe?
É engraçado você me perguntar isso, porque estou com 52 anos e nunca tive chefe. Eu fiz um exame neurológico, que envolvia jogos de imagem e memórias. Nesse exame, perguntavam: "Alguém já te disse isso" ou "alguém te mandou fazer aquilo?".

Eu então me dei conta de que passei grande parte da minha vida sem superiores, por mais que tenha tido professores, com quem me dava muito bem. Nunca tive a presença do pai nem do patrão.

O André é uma pessoa mais jovem, tem 50 anos, e é muito enérgico, e eu sou mais contemplativo.

É muito bom ter alguém a quem recorrer. É uma maravilha. Talvez o problema dos meus 52 anos de vida tenha sido não ter tido patrão.

Quanta autonomia você tem?
Eu não pedi carta branca. É uma questão de bom senso. Não recebi nenhuma queixa dele até agora.

A Biblioteca Mário de Andrade vai passar a ser administrada por meio de uma organização social, como a gestão Doria quer fazer com as demais bibliotecas?
Eu, pessoalmente, gostaria que isso existisse. Ia ser muito mais fácil trabalhar. Seria uma hipocrisia eu falar o contrário. O trâmite para comprar um durex aqui é uma coisa absurda. Tem que fazer licitação. É realmente um desafio trabalhar aqui. Exige muito tempo.

Agora, eu não acho que vá haver tempo para isso. A opinião pública conta muito. A gente acaba atendendo também a sociedade, não faz só o que eu quero ou o que o secretário quer. OS não é privatização, e facilita muito. Hoje, se eu conseguir uma doação para ajudar a biblioteca, esse dinheiro vai para a prefeitura.

Já veio aqui durante a madrugada? O que achou?
Já. É animador ver pessoas aqui. Talvez seja meu lado editor, de querer que as pessoas gostem de livros, que fica muito animado. Tem uma certa similaridade, é o mesmo público-alvo.

Você disse à revista 'Veja' que se frustrou com a vitória de João Doria e que as obras da primeira-dama, Bia Doria, eram 'a cafonice de São Paulo'. O que o fez trabalhar para ele?
Eu não li essa entrevista. Nunca vi uma entrevista que dei. Não tenho Facebook, Instagram, procuro me resguardar. Fiz um comentário indelicado acerca do gosto artístico do prefeito. Eu não teria feito esse comentário se soubesse que iria trabalhar na Biblioteca Mário de Andrade. Mas não posso retirar o comentário, ele já foi feito.

Não acho que o comentário seja de uma gravidade tal que eu tenha de me retratar. Foi um comentário infeliz, mas não é o primeiro que faço. Cheguei até a perguntar ao meu psiquiatra se deveria me retratar. Acho que o prefeito foi muito elegante.


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