Folha de S. Paulo


Há um rebaixamento cultural, diz diretor Luiz Fernando Carvalho

Divulgação/Raquel Couto
Imagens dos bastidores da serie Dois Irmaos Credito Divulgacao/Raquel Couto
Luiz Fernando Carvalho nos bastidores de 'Dois Irmãos

O diretor Luiz Fernando Carvalho diz ter sentido uma "vertigem emocional" ao ler "Dois Irmãos" (Companhia das Letras), de Milton Hatoum, pela primeira vez. Conhecido por suas adaptações literárias, agora ele coloca no ar a história dos dois gêmeos que se odeiam.

Com a série, o diretor volta a explorar temas familiares –como já havia feito com "Os Maias", de Eça de Queiroz, e "Lavoura Arcaica", de Raduan Nassar. Nesta entrevista à Folha –parte por e-mail, parte por telefone– ele comenta como foi transpor para a tela o romance e diz ver um rebaixamento cultural no Brasil.

É o primeiro livro brasileiro contemporâneo que você adapta. É uma exceção? Seu trabalho tem predileção pelo cânone?

De forma alguma, a literatura contemporânea me interessa muito. Adoro [Haruki] Murakami e até nomes mais pop. Mas não posso negar que minha formação desde adolescente passa pelos clássicos. Por William Faulkner, Joseph Conrad, Charles Dickens, Machado de Assis e Dostoiévski. Dostoiévski é o maior cineasta do mundo.

O romance tem vendido bem. Um livro importante como 'Dois Irmãos' vender tanto por causa de uma série não será um sinal do desprestígio da literatura? Há quem diga, aliás, que esse desprestígio é fruto da cultura da imagem.

Pelo amor de Deus, não acredito em nada disso. Até mesmo porque as palavras também são imagens. De nenhuma forma a imagem derrubou a literatura.

Quando isso acontece, você deve se perguntar sobre a realização. Quando você não é tocado, algo ocorreu nos procedimentos daquela construção estética.

Qual a maior dificuldade ao transpor a obra para a TV?

Meu movimento inicial foi refletir sobre o tema da polarização, presente nos gêmeos, mas também na história política brasileira, traço que me parece trágico.

Estou na edição, diante da cena da morte de Halim, ele cristalizado pela perplexidade das transformações do mundo. Veja que coincidência. Na semana de estreia, assassinatos se multiplicaram nos presídios de Manaus.

O conceito é algo móvel, como a vida, que necessita ser posto à prova diante das forças e da imensidão do real! Os acontecimentos de Manaus modificaram a forma de editar os capítulos finais.

Você ainda encontrou a Manaus da "belle époque" retratada em parte do livro?

Não encontrei vestígios daquela Manaus tropical dos anos 1920, tive que reinventá-la. Por tudo isso, é uma dor e uma alegria imensa se deparar com tanta vida brotando de uma escrita como a de "Dois Irmãos". É um enredo no qual o tempo e a finitude das coisas são personagens.

Quase todas os suas adaptações literárias têm a família como tema. Por quê?

A família contém todos os temas: amor, paixão, ódio, nascimento, vida e morte. Não há um grande escritor que não tenha triscado nas questões familiares. Meus mestres nisso, além das leituras, posso afirmar: Raduan Nassar, Eça de Queiroz e Milton Hatoum.

Com as séries americanas, fala-se muito em inovações na estrutura narrativa vindas da TV. No entanto, a literatura parece já ter feito todas as experiências com isso. Há mesmo novidade desse tipo na TV?

Fui o diretor que mais trabalhou com literatura no país. Se você pegar os romances do século 19, em termos formais, eles estão muito à frente. Os temas literários são copiados pelas séries e blockbusters.

Houve um rebaixamento cultural muito grande. O público perdeu essa referência. E não só o público da TV, mas a população com um todo. Perdeu-se a noção do poder inventivo da alta literatura.


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