Folha de S. Paulo


Nova geração de fotógrafos argentinos ataca visões assépticas de Buenos Aires

Delicadas moças surgem clonadas em praças resplandecentes. Um tanto robóticas, entregues à contemplação de mentira ou no passo apressado de executivas na volta do almoço, elas povoam paisagens imaginárias fabricadas por arquitetos para vender as cidades do futuro.

"Essas pessoas se multiplicam por todos os cenários, não demonstram sentimentos", diz Federico Paladino, artista que usa em suas colagens fotográficas as perspectivas de novos espaços urbanos dominados por bonequinhos de bancos de imagens. "É muito impessoal, genérico, asséptico. A ideia é construir um futuro possível de modo neutro."

Numa Buenos Aires que se plastifica e se rende à invasão de caixotes espelhados tão sem graça quanto as figuras descarnadas de Paladino, uma nova geração de fotógrafos argentinos ataca mudanças urbanísticas usando as mesmas armas e truques visuais da indústria imobiliária.

Divulgação
Fotografia de Jorge Miño, da nova geração de artistas e fotógrafos de Buenos Aires
Fotografia de Jorge Miño, da nova geração de artistas e fotógrafos de Buenos Aires

São cenários obcecados pela ideia de limpeza, onde o sol nunca se põe e a brisa sopra agradável. No fundo, eles descortinam um tempo achatado, que embaralha a promessa de um mundo novo e a ruína latente desses surtos de fúria construtiva.

Manuel Fernández, outro fotógrafo em ascensão na cena argentina, destrincha a ambiguidade dessa marcha rumo ao progresso em fotografias de cartazes publicitários das novas construções que se espalham por Buenos Aires.

Mas, ao contrário da paisagem fantástica que ilustram, esses outdoors plantados diante de canteiros de obras já sofrem com a ação do tempo. Eles aparecem rasgados, mofados ou rabiscados, da mesma forma que um dia as construções que anunciam também podem cair em desgraça.

"Queria trabalhar com imagens que pensassem o futuro", diz Fernández. "Mas esse futuro tem marcas, já nasce com pegadas. O suposto progresso é conflituoso."

Na raiz desse movimento, críticos do país enxergam uma nova consciência política, que reflete ao mesmo tempo a desconfiança em relação ao futuro e a crença na volta do crescimento econômico nos anos pós-Kirchner.

"Havia uma onda de artistas falando sobre o próprio umbigo", diz o fotógrafo e crítico Francisco Medail. "Mas, nos últimos anos, houve muitas mudanças, e todos tiveram de tomar um partido. Há um interesse em pensar o país como uma construção conjunta. É olhar o futuro das cidades a partir do jogo imobiliário que atravessa Buenos Aires."

Enquanto bairros tradicionais como a Boca e Palermo são redesenhados pelas empreiteiras, o mercado de arte também reage às construções. Obras de Paladino, Fernández, Medail e de uma série de artistas de olho no falso brilhante dessa nova metrópole conquistam colecionadores.

Vendas em alta na Buenos Aires Photo, feira argentina dedicada à fotografia, e um aumento no volume de mostras fotográficas nas instituições e galerias da capital sustentam a nova onda artística.

"O país estava na merda, e agora há outro espírito", diz Diego Costa Peuser, diretor do evento comercial. "Isso não significa que outros governos não apoiavam a cultura, talvez apoiassem até mais. Mas agora há uma projeção de crescimento mais forte."

Essa projeção, no entanto, pode ser ilusão, como desconfia o artista Jorge Miño. Suas imagens transformam visões assépticas de lounges de aeroporto e escadarias envidraçadas em cárceres labirínticos, metálicos e asfixiantes.

"Há algo de cinematográfico nisso, como os filmes de Hitchcock ou o cinema noir", diz Miño. "É o lugar como imagem e não mais como espaço. A ideia é desaparecer, inverter a solidez da arquitetura."

O jornalista viajou a convite da BA Photo.


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