Folha de S. Paulo


Poeta Wislawa Szymborska faz do 'não saber' um relato cortante da vida

Soren Andersson/Associated Press
A poeta Wislawa Szymborska fumando durante o banquete servido na entrega do Prêmio Nobel de Literatura de 1996
A poeta Wislawa Szymborska fumando durante o banquete servido na entrega do Prêmio Nobel de Literatura de 1996

Em ano tão barulhento quanto 2016, tão cheio de convicções exaltadas, não poderia ser mais oportuna a publicação de "Um Amor Feliz".

Não é da certeza, e sim da dúvida que vem a poesia da polonesa vencedora do Nobel de 1996, Wis?awa Szymborska (Vissuáva Chembórsca –segundo a tradutora). Com sereno bom humor e ironia cortante, mas nunca frívola, ela se aproxima da vida, esse modo de "incessantemente não saber / algo de importante".

Trata-se da segunda antologia da autora organizada por Regina Przybycien (que se esqueceu de ensinar a pronúncia do seu próprio nome).

A primeira, em 2011, já tinha sido um êxito considerável. Esta, mais extensa, traz alguns dos melhores poemas da autora, como "Autonomia", "Monólogo para Cassandra" e "Sobre a Morte sem Exagero", aos quais acrescenta o discurso de recepção do Nobel, "O Poeta e o Mundo", uma obra-prima de reflexão sobre o desamparo da razão e o papel que pode caber à poesia.

Dessa perspectiva rigorosamente cética, o fazer da poesia é um "não saber" que não cessa: "A cada problema resolvido segue-se um enxame de novas perguntas". Szymborska faz dessa produtividade toda uma poética, que na periferia da tradição ocidental vinha instigar a dúvida –não como um tormento a mais, e sim como antídoto contra as ilusões que tanto estrago fizeram no século 20 e continuam a fazer. O poeta, "se é poeta de verdade", deve "repetir constantemente para si mesmo: não sei".

É uma ética o ânimo dessa poesia. Szymborska nos lembra que torturadores, ditadores, fanáticos e demagogos são tão inventivos e fervorosos quanto um poeta, com a diferença de que só podem estar sempre convictos, "e aquilo que sabem lhes basta de uma vez por todas". Vem daí a eficiência do ódio, assunto de um dos poemas mais fortes do livro: "quantos a dúvida arrasta consigo?" –pergunta a autora. "Só ele, que sabe o que faz, arrasta".

ASFIXIA

Szymborska, que morreu em 2012, aos 88, surgiu no contexto asfixiante do comunismo no Leste Europeu. Seu ceticismo era uma reação à opressão totalitária. Mas a história se mostra uma fina ironista. Como pode a polonesa continuar tão atual hoje, quando os dogmatismos são tão diversos? O teste de fogo dessa obra feita para resistir à redução de tudo à propaganda estatal é agora se ela pode resistir à redução de tudo ao consumo e ao fanatismo religioso.

Seu trunfo é a alta capacidade de comunicação de uma poesia conversacional, muitas vezes prosaica, que desperta os leitores enjoados com o pedantismo e o academicismo dominantes. Num gênero sujeito a mistificações, Szymborska debocha dos "mistifórios finórios" (impugnando, como se vê aqui, o lugar-comum sobre a "intradutibilidade" da poesia).

Nos anos 1950, o "realismo socialista" baniu o primeiro livro da autora, tachando-o de "inacessível para as massas". Ironicamente, para ser publicável num país cuja população nem sequer elegia seus governantes, ela aprendeu a ser acessível para o público.

Isso não chega a ser uma concessão de quem se opunha à estética do Partido Comunista por não crer numa realidade tão estável assim, independente da perspectiva do indivíduo, que o artista engajado pudesse representar. Mas o mesmo ceticismo a impediria de comprar o peixe oposto, de uma crise da representação na modernidade, que abrisse um fosso entre artista e público.

Um Amor Feliz - Poemas
Wislawa Szymborska
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Justamente a incerteza sobre a possibilidade de a mímesis duplicar o mundo ou empalhar a experiência humana é o que impõe para Szymborska a necessidade de representar. Inclusive o irrepresentável por definição, como mostra nesse livro um de seus poemas mais tocantes, "Fotografia de 11 de Setembro".

Talvez seu segredo esteja nessa perspectiva do indivíduo, no apelo à consciência individual como ingrediente por onde o público pode tornar-se irredutível a uma massa acessível às manobras da propaganda. A escrita, assim, se lança à busca improvável de semelhantes. "Somos parecidos também no que não sabemos" –diz a poeta cética numa espécie de conversa com as plantas, como se o dissesse a cada um de seus leitores.

SÉRGIO ALCIDES é professor da Faculdade de Letras da UFMG, autor de "Armadilha para Ana Cristina" (Verso Brasil).

Um Amor Feliz
QUANTO: R$ 44,90 (328 PÁGS.)
AUTOR: Wislawa Szymborska
TRADUÇÃO: Regina Przybycien
EDITORA: Companhia das Letras


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