Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Poesia de Carlito Azevedo dá a cara para bater

Durante os primeiros anos da Revolução Russa, Marina Tsvetáieva conta ter avistado um cão que carregava no pescoço um cartaz com os dizeres: "Matem Lênin e Trótski ou eu serei comido". É esse mesmo cão o narrador do primeiro dos dois longos poemas do "Livro das Postagens", de Carlito Azevedo.

É ele que, como um estribilho reiterativo durante o poema, reclama a presença do autor, que não está "aqui".

Da mesma forma como o autor do cartaz visto por Tsvetáieva, também muitos dos autores de poemas que percorrem o espectro do século 20, até o 21, lançam sobre seus personagens a carga de uma voz que denuncia, lamenta, sofre, enquanto eles mesmos mantêm-se inatacáveis em seu trono de artista.

Adriano Vizoni/Folhapress
RIO DE JANEIRO, RJ, BRASIL, 08-07-2012, 16h00: FLIP 2012. Mesa 17: Drummond - o poeta presente, com Armando Freitas Filho (em video), Eucanaa Ferraz e Carlito Azevedo (esq p/ dir), durante a 10 edicao da Flip. (Foto: Adriano Vizoni/Folhapress, ILUSTRADA) *** EXCLUSIVO FSP**
O escritor Carlito Azevedo recita poema na Flip

O cão ocupa o lugar de vítima e algoz, enquanto ninguém age para salvar ou matar os Trótskis e os Lênins que nos oprimem. Não é o caso da própria Marina que, como conta o cão, num verso impressionante, "deu de comer à corda o próprio pescoço". Mas quem é que, agora, está fazendo isso? Quem está correndo riscos?

O cão deste poema, num aqui e num agora permanentes, lastima o fato de a própria poesia transformar o real em palavras que, uma vez ditas, por mais que apontem para o horror, também nos afastam dele.

Como superar esse abismo e transpô-lo? "O autor deveria estar aqui. Visa a realidade e depois/ se proíbe os meios de atingi-la" Pois Carlito não se furta a estar ali/aqui.

É ele o cão, é ele o autor cuja presença o cão demanda, é ele que assume não estar – estando. Num mundo teatral, em que todos estamos construídos de papelão, virtualidades e simulacros, um cão pede que "choquemos ovos no despenhadeiro", que vejamos, a um palmo do olho, "a pinça do escorpião".

E é este mundo quase despencando que lemos no segundo poema: "O Livro das Postagens". A partir da imagem de uma garota que posa para uma foto durante a ditadura, como se estivesse em situação normal, Carlito constrói uma montagem de cartas, postagens, fragmentos de conversas, referências externas, atualizando a ideia da alegoria feita de ruínas, neste caso ruínas de discursos, perguntando-se sobre o significado das imagens e sobre a possibilidade de agir em tempos trágicos que, como suspeitamos, são todos os tempos.

É preciso dizer, mas é impossível dizer e não se escapa disso, o que, em si mesmo, é também uma tragédia. "Tocar sempre a nota que impeça os outros músicos de tocar a nota que eles imaginam que vão tocar", como fazia Ron Carter, talvez seja uma alternativa. Não fazer o que se deve fazer, por mais frágil que seja a condição do poeta, é um jeito do poeta aparecer e de, junto com o cão, expor-se sem medo.

"O Livro das Postagens" se entrega e, na fuça do escorpião, dá a cara para bater.

O LIVRO DAS POSTAGENS
AUTOR Carlito Azevedo
EDITORA 7Letras
QUANTO R$ 29 (76 págs.)

NOEMI JAFFE é crítica literária e autora de "Írisz - As Orquídeas" (Companhia das Letras)


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