Folha de S. Paulo


Crítica

Narração de 'As Mil e Uma Noites' é ato de sobrevivência

Mais de um ano após a estreia de "As Mil e Uma Noites "" Volume 1: O Inquieto", chegam ao Brasil a segunda e a terceira parte do tríptico do português Miguel Gomes: "O Desolado" e "O Encantado".

A partir da estrutura narrativa da célebre coleção de histórias orientais, Gomes (do marcante "Tabu", 2012) medita sobre a recente crise econômica de Portugal afirmando, ao mesmo tempo, uma concepção de cinema resolutamente moderna, pois poética e política, mítica e libertária.

Para não ter a cabeça cortada pelo marido, Xerazade (Crista Alfaiate) conta histórias de um Portugal exangue, relatos igualmente movidos pela necessidade de sobrevivência. Narrar "nos ajuda a sobreviver", diz ela. As histórias foram adaptadas com muita liberdade de fatos ocorridos no país durante o ano que duraram as filmagens.

Nessa contaminação entre real e imaginário, o encanto e o desencanto se misturam em narrativas que assumem os contornos do drama, da sátira, da comédia e da tragédia. Algumas têm figuras fabulosas, como gênios e outras criaturas quiméricas; outras mostram gente comum.

A primeira história de "O Desolado" é a de Simão Sem Tripas, um fora da lei perseguido pela polícia em áridos confins rurais. Sem nada além de uma espingarda, apesar de acuado, o assassino Simão não perde a magnificência: banqueteia-se em plena natureza e dá pleno curso à sensualidade.

Hedonista, pedinte em fuga e ladrão, Simão é uma metáfora da Europa atual. Preso, acaba sendo aplaudido pela população, que vê heroísmo em sua resistência.

A história seguinte é talvez a melhor. Mostra um julgamento num anfiteatro ao ar livre, que evoca a Grécia. Ali estão a juíza e uma ativa multidão de réus, testemunhas e espectadores. Entre a malta, uma vaca que fala e gente com aspecto de animais.

A juíza tem a missão de resolver um contencioso financeiro entre duas pessoas, mas o julgamento ganha feições absurdas. À medida que os depoimentos se sucedem, o litígio inicial se revela ligado a outro, este a um terceiro, e assim sucessivamente.

Todos têm origem nas dificuldades financeiras dos envolvidos, numa frenética espiral que a magistrada, em lágrimas, qualifica de "rosário de desgraças". O surrealismo da situação aponta para o que o real tem de delirante.

O terceiro e último episódio também fala de miséria econômica e existencial. Acontece em conjuntos habitacionais de um bairro periférico em que o cão Dixie é o traço de união entre dois casais, um velho e outro jovem, que afundam no desalento.

O tom aqui é de documentário, quase solene em seus prolongados silêncios.

"O Encantado" põe Xerazade em cena. Ela resolve sair do palácio e conhecer o reino. Gomes se afasta do cenário português para abraçar plenamente o universo da fábula.

Ela viaja com um grupo de bandoleiros, banha-se nua no mar, conhece Paddleman –que tem centenas de filhos e se destaca pela beleza e por uma prodigiosa estupidez que leva Xerazade a dizer-lhe que o melhor que tem a fazer é calar-se–, torna-se amante de Elvis, um pitoresco ladrão.

Esse hedonismo é reforçado pela trilha sonora, que traz "Fala", dos Secos e Molhados, e um show dos Novos Baianos interpretando "Samba da Minha Terra" interpolado às cenas de Xerazade.

O volume 3 termina com um contrastante –porque realista– e um tanto alongado relato sobre a criação de tentilhões. Admiradas por seu canto, as aves são capturadas e treinadas por homens melancólicos da periferia de Lisboa, que os exibem em concursos nos quais chegam a morrer de cantar. A beleza é frágil e traz em si a tragédia.

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AS MIL E UMA NOITES (VOL. 2)
DIREÇÃO Miguel Gomes
ELENCO Crista Alfaiate, Chico Chapas, Carloto Cotta, Américo Silva
PRODUÇÃO Portugal, França, Alemanha e Suíça, 2015, 14 anos
QUANDO: estreia nesta quinta

AS MIL E UMA NOITES (VOL. 3)


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