Folha de S. Paulo


Stefan Zweig orienta jovem sobre sionismo em correspondência inédita

O arquivista alemão naturalizado israelense Stefan Litt, da Biblioteca Nacional de Israel (BNI), em Jerusalém, checou diversas vezes a lista de cartas conhecidas do escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942), que viveu no Brasil entre 1940 e 1942, quando morreu, aos 60 anos.

Ao ver que o nome de Hans Rosenkranz não fazia parte do rol, entendeu que estava diante de uma rara descoberta: 26 cartas e 6 postais inéditos escritos por Zweig para o amigo há quase um século.

O tesouro desconhecido era guardado havia décadas pela filha adotiva de Rosenkranz, Hannah Jacobson, 92.

Há seis meses, Litt recebeu um telefonema de Jacobson, moradora de um subúrbio de Tel Aviv. Ela havia decidido doar os documentos para a BNI, certa de que as cartas revelariam detalhes desconhecidos sobre o autor de "Brasil, País do Futuro" (1941).

Suse Hoeller/Divulgação
O escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942)
O escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942)

Ela tinha razão: os manuscritos revelam um Zweig empático e paternal, interessado em ajudar jovens aspirantes à literatura e preocupado com o futuro dos judeus na Europa pré-Holocausto nazista –a ascensão de Hitler acabaria levando ao suicídio de Zweig e sua mulher, Lotte Altmann, ambos judeus, em Petrópolis, em 1942.

"As cartas provam que Zweig tratava de maneira séria até demais os potenciais escritores que entravam em contato com ele", explica Stefan Litt. "Já sabíamos que ele gostava de dividir sabedoria de vida e dicas literárias. Mas essas cartas foram uma surpresa porque nelas ele se abriu e trocou ideias francamente com um estudante."

A correspondência também evidencia ideias poucos conhecidas do autor. "Ele revela, nas cartas, um posicionamento sobre a questão do judaísmo e do sionismo, assunto do que ele não falava em público", diz Kristina Michahelles, diretora da Casa Stefan Zweig, em Petrópolis, localizada na casa onde o escritor austríaco se suicidou.

A correspondência a Hans Rosenkranz cobre um período de 12 anos. A primeira missiva é de 1921, quando Rosenkranz, então um aspirante a escritor judeu austríaco, tinha apenas 16 anos. Zweig, aos 40, já era famoso. Ele sugeriu ao jovem, por exemplo, que visitasse outras culturas e aprendesse novos idiomas.

"Essa é a chave para a liberdade. Quem sabe, talvez, a Alemanha e a Europa se tornem tão sufocantes que o espírito da liberdade não seja capaz de respirar nelas", previu.

O escritor austríaco também discorreu sobre o judaísmo: "O judeu precisa se orgulhar de seu judaísmo e glorificá-lo –mas, no entanto, não é apropriado se gabar das realizações [...] de um grupo de pessoas homogêneo do qual pertence".

Rosenkranz acabou se tornando jornalista e editor. Ainda na Alemanha, casou-se com Lily Hyman, mãe de Hannah Jacobson. Emigrou para a Palestina em 1933, onde mudou seu nome para Hai Ataron e trabalhou nos jornais israelenses "Haaretz" e "Jerusalem Post" antes de também se suicidar, em 1956.

Zweig, que não apoiava a ideia de criação de um Estado judeu, tentou desencorajar o pupilo de migrar para onde, em 1948, seria criado Israel. Paralelamente, no entanto, não escondeu sua admiração ao jornalista austríaco Theodor Herzl, o criador do movimento sionista.

"Nos últimos dias, tenho lido os diários de Herzl: tão incrível era a ideia, tão pura, enquanto era apenas um sonho, limpo de política e sociologia", escreve.

COFRE

"Sempre há novos aspectos a descobrir. Stefan Zweig nunca morre", diz Kristina Michahelles, contando que outras cartas do escritor austríaco foram encontradas, recentemente. Ela mesma, em 2010, recebeu uma carta inédita de Zweig ao ditador italiano Benito Mussolini, agradecendo-o por sua sua "bondade" ao libertar um preso politico a pedido seu –o chamado "Caso Germani".

Jacobson conservava as cartas de Zweig desde 1979, quando sua mãe morreu. Entre seus pertences, encontrou um envelope marrom lacrado e com apenas uma palavra escrita: "Zweig". Ela guardou os manuscritos num cofre de banco.

Reprodução
Carta de Stefan Zweig doada à Biblioteca Nacional de Israel
Carta de Stefan Zweig doada à Biblioteca Nacional de Israel

"Há cinco anos, tentei doar os documentos, mas um trapaceiro afirmou que eles não valiam nada", contou Hannah Jacobson à Folha em seu pequeno apartamento. "Ele me ofereceu US$ 500 pelas cartas, o que eu achei um acinte. Certamente, ele iria vendê-las para colecionadores", acredita.

Agora, Jacobson está satisfeita com o novo lar da correspondência. Depois de passar por uma restauração, as cartas foram catalogadas e estão, aos poucos, sendo escaneadas para serem, finalmente, divulgadas no site da Biblioteca Nacional. Mas o público pode, já hoje, consultá-las livremente.

"Fiquei muito feliz com o destino das cartas. Minha mãe teria ficado muito orgulhosa", diz a herdeira.

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LEIA TRECHOS

"Caro Sr. Rosenkranz. Não, sua mensagem não foi um fardo no mínimo, mas realmente me fez feliz. O seu trabalho, toda a sua abordagem espiritual, é tão surpreendente vindo de um jovem de 16 anos, na medida em que senti um verdadeiro respeito."

"O judeu tem que se orgulhar de seu judaísmo e glorificá-lo —mas, no entanto, não é apropriado se gabar das realizações que conseguiu com suas próprias mãos, para não mencionar as realizações de um grupo de pessoas homogêneo ao qual pertence."

"Se o judaísmo é uma tragédia, que nós a vivamos. Estamos diante do mundo como a maior tragédia do grande poeta Deus e não vejo nenhuma vergonha no fato de que (agora) somos seus atores, seus personagens impermanentes."

"Se você quiser fazê-lo (imigrar para a Palestina) com toda a sua força, com toda a sua fé, tudo bem. Mas vá para lá somente se você acreditar, não por desgosto desse mundo alemão ou devido à procura amargurada de um caminho para escapar."

"Não sou um nacionalista, pelo senso convencional. Esse tipo de posição seria nada mais do que concordar com o simples fato de que um judeu descobrirá que é um judeu e um alemão, que é um alemão".

"Não há nada que eu odeie mais do que o autoculto de nações e sua recusa em reconhecer a variedade de formas de povos e os tipos de seres humanos e experimentá-los como a beleza do existir."

"Nos últimos dias, tenho lido os diários de Herzl: tão incrível era a ideia [de um Estado Judeu], tão pura, enquanto era apenas um sonho, limpo de política e sociologia."

Extraídos da correspondência entre o escritor Stephan Zweig e Hans Rosenkranz, doada à Biblioteca Nacional de Israel


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