Folha de S. Paulo


Três livros repassam a trajetória do cinema brasileiro

O cinema brasileiro nasceu subnutrido: num país em que a eletricidade no começo do século 20 era parca até na capital federal, ele só estourou quando ela se estabilizou. Depois, ele cambaleou um tanto, deglutiu o invasor estrangeiro feito um índio antropofágico, entrou em coma, foi ressuscitado e ainda padece da desconfiança conterrânea.

Três livros recém-lançados esbarram nesse percurso tumultuado: "Uma Situação Colonial?" de Paulo Emílio Sales Gomes, "A Odisseia do Cinema Brasileiro", de Laurent Desbois, e "Cinema de Invenção", de Jairo Ferreira.

A organização dos textos de Paulo Emílio, morto em 1977, ficou a cargo de seu ex-aluno, o professor de cinema da USP Carlos Augusto Calil, que assina o posfácio de "Uma Situação Colonial?".

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Cena do filme
Cena do filme "Terra em Transe", de Glauber Rocha, um dos expoentes do cinema novo

Fundador da Cinemateca e o maior pensador do cinema no país, Paulo Emílio reflete sobre aspectos da produção brasileira em tópicos: entraves da produção, necessidade de criar um acervo para preservação do audiovisual e a emergência do cinema novo -movimento com o qual acabou tendo embates.

"Paulo Emílio foi mal lido porque é sutil, complexo", diz Calil. "Esse livro é um roteiro de leitura que ajuda a acompanhar o seu pensamento."

Estão no livro, por exemplo, o ensaio que talvez seja o mais conhecido do teórico paulistano, "Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento", publicado em 1973, que reflete sobre as peculiaridades da produção brasileira e sua "incompetência criativa em copiar" (leia abaixo).

"[O livro] Não é uma lição sobre cinema, é sobre Brasil", diz Calil. "Nele, Paulo Emílio está pensando em problemas brasileiros e que o cinema não foi capaz de resolver."

Publicado originalmente na França, "A Odisseia do Cinema Brasileiro" faz uma reflexão enciclopédica e cronológica desse percurso, sob o ponto de vista estrangeiro e algo condescendente do pesquisador Laurent Desbois.

Ex-colaborador dos "Cahiers du Cinéma", o francês radicado no Rio reconstitui uma trajetória que vai da Atlântida, companhia cinematográfica responsável pelas chanchadas dos anos 1940 e 1950, até os primeiros louros internacionais colhidos pelo cinema da retomada, entre os anos 1990 e 2000.

Desbois, que nas páginas não esconde deslumbre com as obras brasileiras, aventa algumas hipóteses para a relativa pouca fama de que o cinema nacional goza lá fora.

"Pode ser um complexo de inferioridade", diz. "Não têm ousadia de inventar: imitam os americanos e os europeus e acabam não se impondo."

O que há de visão outsider em Desbois encontra o seu duplo insider em Jairo Ferreira.

Uma Situação Colonial?
Paulo Emílio Sales Gomes
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Jornalista e ex-colaborador da Folha, Ferreira, morto em 2003, foi diretor e roteirista no contexto que ele retrata no livro: o cinema marginal, que floresceu à sombra da ditadura como resposta radical ao cinema novo, cada vez mais alienado do público.

Publicado pela primeira vez em 1986, "Cinema de Invenção" é um inventário pessoal de diretores como Rogério Sganzerla, Ozualdo Candeias e José Mojica Marins.

"O movimento era tudo menos organizado", diz o diretor Paulo Sacramento, que organizou a reedição e acrescentou anexos informativos. "Jairo foi quem teve a sacada de organizar aquilo tudo, mas de forma nada acadêmica."

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LEIA TRECHOS

Geograficamente a Boca do Lixo se situa no bairro de Santa Efigênia e foi assim batizada pela crônica policial devido ao tradicional bate-bolsa ao longo de umas vinte quadras entre as avenidas Rio Branco e Duque de Caxias. As prostitutas devem ter chegado primeiro, mas os distribuidores de filmes estrangeiros aí se estabeleceram desde o começo do século por causa da proximidade com a ex-rodoviária e entroncamento ferroviário Estação da Luz/Sorocabana, espalhando latas de filmes e doenças venéreas pelo interior do Estado e outras capitais. No meu "Balanço de 1967", incluí "A Margem" entre os melhores do ano, claro, mas sem dar maior ênfase ao surgimento da onda experimental que teria impulso decisivo com "O Bandido da Luz Vermelha", JAIRO FERREIRA, no livro "Cinema de Invenção"

Não somos europeus nem americanos do Norte, mas, destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro. O filme brasileiro participa do mecanismo e o altera através de nossa incompetência criativa em copiar. O fenômeno cinematográfico no Brasil testemunha e delineia muita vicissitude nacional. A invenção nascida nos países desenvolvidos chega cedo até nós. O intervalo é pequeno entre o aparecimento do cinema na Europa e na América do Norte e a exibição ou mesmo a produção de filmes entre nós nos fins do século 19., PAULO EMÍLIO SALES GOMES, no livro "Uma Situação Colonial?"

O renascimento internacional do cinema brasileiro acontece em fevereiro de 1998, na Alemanha, quando o terceiro filme de Walter Salles ["Central do Brasil"] e sua protagonista, Fernanda Montenegro, vencem o Urso de Ouro (melhor filme) e o Urso de Prata (melhor interpretação feminina). O acontecimento, seguido doze meses depois por uma dupla indicação ao Oscar, revigora a Retomada, dinamizando prodigiosamente o cinema nacional, até que "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles e Kátia Lund, produzido por Walter Salles, repita a performance após cinco anos e lhe dê um novo impulso., LAURENT DESBOIS, no livro "A Odisseia
do Cinema Brasileiro"

A Odisseia Do Cinema Brasileiro
Laurent Desbois
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UMA SITUAÇÃO COLONIAL?
AUTOR Paulo Emílio Sales Gome
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 79,90 (544 págs.)

A ODISSEIA DO CINEMA BRASILEIRO
AUTOR Laurent Desbois
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 89,90 (592 págs.)

CINEMA DE INVENÇÃO
AUTOR Jairo Ferreira
EDITORA Azougue
QUANTO R$ 40,60 (332 págs.)


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