Folha de S. Paulo


Crítica

História e política são sacrificadas ao carisma de Neruda e seu mito

No princípio do cinema de Pablo Larraín existe a transformação de um não em um sim. É justamente o que enuncia seu filme mais célebre, "No". Ali, onde o plebiscito chileno do filme de 2012 pedia um voto contra o governo Pinochet, o protagonista, um publicitário, inverte os dados e faz do "não" uma afirmativa.

Pode-se alegar que existe nessa operação uma perda da pureza política. O filme, no entanto, sustenta que a eficácia compensa essa perda. Afinal, o "no" venceu, contra todas as previsões.

Não é tão diferente o que vemos em "Neruda", embora o assunto mude inteiramente. Pablo Neruda (Luis Gnecco) é, como se sabe, um dublê de poeta e político chileno. Senador comunista, é perseguido no final dos anos 1940, quando governos latino-americanos se alinham à política dos EUA e o Partido Comunista é banido.

A ênfase volta-se ao desejo de Neruda em transformar sua fuga em fato político. Mas é por aí mesmo que Larraín dribla o político para privilegiar o, digamos, poético-policial.

Perde-se algo com isso, certamente: aspectos políticos e históricos, decisivos no caso, passam a plano bem secundário, sacrificados ao carisma de Neruda e ao seu mito.

Temos aqui, então, a narrativa da fuga de um homem que de certa forma dirige seu perseguidor, o policial Peluchonneau (Gael García Bernal).

À medida que segue as pistas produzidas pelo poeta, o policial torna-se uma espécie de duplo daquele a quem persegue. Quase imperceptivelmente, submete-se a ele, deixa-se conformar pelo inimigo.

Talvez essa seja a maneira como se manifesta o narcisismo de Neruda: na produção de um alter ego.

Desde então, a trama adquire um quê borgiano: a ação será sempre paralela, com o protagonista lançando pistas e enigmas e o antagonista seguindo-as e tornando-se o outro à força de imaginá-lo, de adivinhar seus passos. E quanto mais evolui nessa direção, mais o filme se fixa no mito Neruda e abandona o homem real, poeta ou político.

Se em "No" era possível vislumbrar mais ganhos do que perdas na opção pelo recalque do político, em "Neruda" se verifica o contrário: transformar uma fuga política em fuga literária termina por fixar o mito do grande homem, porém em prejuízo do próprio homem, de certa forma retirado de seu contexto para se transformar quase num herói Marvel da alta cultura.

"Neruda" não é um mau filme, porém as escolhas que faz dizem respeito muito mais à indústria cultural do que propriamente à arte do real, o cinema.

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NERUDA
DIREÇÃO Pablo Larraín
ELENCO Gael García Bernal, Luis Gnecco, Alfredo Castro
PRODUÇÃO Chile, 2016, 14 anos
QUANDO: estreia nesta quinta (15)


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