Folha de S. Paulo


Depoimento

Ode a Leonard Cohen, escrita por um monge zen

Quando conheci Leonard Cohen, eu era um escritor fracassado, e agia como se o fosse. Estávamos esperando para entrar na fila da caminhada de meditação do Rinzai-ji Zen Center, em Los Angeles. Fingi não saber quem era ele e perguntei se meu Ford Festiva estava estacionado no lugar certo. "Com certeza", ele disse.

Fingi surpreso: "'Everybody Knows'. Reconheceria sua voz em qualquer lugar".

O nome dele como monge, Jikan, queria dizer "nobre silêncio", e foi isso que ele manifestou então. Fiquei envergonhado.

Desisti de escrever para me tornar monge zen e mais tarde, uma década depois de encontrar Jikan, escrevi um livro sobre ser monge. Uma monja prestativa começou a deixar capítulos da minha obra em progresso na cabana dele, durante um retiro.

Eu era o monge mestre do mosteiro, e o abordei no final de um longo dia para perguntar se suas costas o estavam incomodando. Ele era um homem baixinho, magro e velho, mas ainda se sentava com a postura muito rígida no salão de meditação zendo.

"Não sinto coisa alguma", ele disse. Concordando com um gesto, eu disse: "Sua meditação deve ser forte".

Ele meneou a cabeça e respondeu: "OxyContin". Depois me olhou nos olhos com uma expressão límpida, quase espantada, e disse: "Ei, adoro seu livro. Posso ajudar em alguma coisa?" Recusei todas as suas generosas ofertas exceto uma, e ele escreveu o prefácio.

Ele tinha um relacionamento que já durava décadas com o nosso professor, o Roshi, e foi meu privilégio testemunhar esses dois homens poderosos "fazerem relacionamento", como Roshi diria.

Acredito que Roshi gostava de ter Jikan por perto porque Jikan não lhe pedia nada. Eles podiam simplesmente tomar o seu chá em silêncio. Quando as pessoas começam a falar, elas inevitavelmente começam a brigar, dizia Roshi.

Certa tarde, Roshi, que àquela altura já tinha 106 anos, e estava diminuído tanto pela idade quanto por um escândalo sexual que devastou a nossa comunidade, sofreu um acidente em suas fraldas geriátricas. Levei-o ao banheiro, e Jikan encheu uma bacia de água morna, tirou seu paletó e abotoaduras e enrolou as imaculadas mangas brancas de sua camisa.

"Jikan, posso cuidar dessa parte", eu disse.

"De jeito nenhum", ele respondeu.

Ajudei Roshi a se levantar enquanto Jikan se ajoelhava por trás dele e o limpava gentilmente.

Assistir a Jikan servindo o nosso professor, de maneira nada obsequiosa mas com inteligência, cuidado e respeito, me ajudou a sofrer menos com os meus fracassos, como escritor e como pessoa. Você aprende que existe algo maior que o sucesso artístico quando vê um grande artista se colocando em posição humilde. Jikan, como qualquer bom monge, era devotado àquilo que seu mestre era devotado.

Ele e Roshi tinham um projeto semelhante, uma visão compartilhada. Roshi a ensinava, Leonard a cantava. Sem dispor da eloquência de Leonard ou da sabedoria de Roshi, eu descreveria a ideia como uma união de coisas contrárias –e depois sua separação, e a luta que acontece entre esses dois momentos.

De maneiras diferentes, eles dedicaram suas vidas a romper e manter o silêncio sobre o que os budistas chamam "o Grande Tema", e o que Roshi definia como Verdadeiro Amor. Leonard era um artista consumido pelo desespero? Não, sua obra estava repleta do que se pode descrever como o oposto do desespero.

Mas na obra de Leonard, o oposto do desespero não era esperança - era clareza. Dessa clareza, lhe veio uma visão de profeta: "Vi o futuro, irmão. Era matança".

Na penúltima vez que encontrei Jikan, eu estava almoçando na rua Larchmont com um velho amigo de meus dias como roteirista de Hollywood, a quem eu havia dado uma cópia do meu livro. Só uma coisa o impressionou, nele: "Cara, não acredito que você conhece Leonard Cohen!".

Saímos da pizzaria, dobramos a esquina e quem encontramos em uma mesinha de rua diante de uma lanchonete? Jikan Leonard Cohen, em pessoa. O escritório dele ficava por perto, e passamos a tarde discutindo como revitalizar o mosteiro, depois da morte de nosso professor.

"E se construirmos um estande de tiro ao alvo e atrairmos a molecada?", disse Jikan. "Cara, se eu fosse 15 minutos mais novo, entraria para o mosteiro".

Sim, tiro ao alvo. Apesar de os liberais empavonados gostarem de imaginar que ele era parte de seu time, Leonard Cohen pertencia a todos. Certa vez, quando estávamos na sala de espera de um consultório médico, ele disse: "Recebi hoje pelo correio o meu boné da National Rifle Association. E quando olhei a etiqueta, não consegui acreditar: Made in China!"

Depois que consegui recolher o queixo, que havia caído até o chão, perguntei: "Você é membro da NRA?"

Ele não desviou o olhar. "Que isso fique entre nós", disse.

Penso naquele episódio agora, durante nosso atual momento histórico, e não faço ideia de em quem Jikan teria votado na recente eleição, mas se havia alguém capaz de deter os dois extremos em suas mãos e em seu coração era o homem que escreveu "queria que houvesse um tratado a assinar... Um tratado entre o seu amor e o meu".

Para um artista informado pela visão do Amor Verdadeiro, forças e pessoas opostas são apenas diferentes tipos de amor tentando se encontrar. Jikan cantava sobre o anseio que existe nessa luta, cantava por esse anseio.

Da última vez que o vi, ele parecia tanto perceptivo quanto leve, como se estivesse desaparecendo. Havia grande dor em seus olhos, e ele tinha a respiração pesada.

Ele me contou que durante sua estadia na Índia, depois de seus anos em nosso mosteiro zen, alguma coisa havia entrado em sincronia e ele havia encontrado uma paz interior que jamais o deixou. "Isso funciona", ele disse. "De algum modo, tudo que estive fazendo nesses anos todos remonta ao trabalho que fiz com Roshi".

Ele tocou as canções de seu novo disco para mim. No final, cordas suaves e belas ditavam o tom, conduzindo o ouvinte a uma melancolia indistinta, pensativa. E então a voz dele emergia expressando seu desejo de um tratado de amor. Ele estava sentado em silêncio diante de mim, um poeta velho, impecavelmente vestido, com seu chapéu fedora preto inclinado ligeiramente em sua cabeça, e a voz dele ecoava ao nosso redor.

Quando ouvi os versos finais, foi como se ele me rachasse ao meio com um raio de luz. Meu rosto ficou quente, meu coração batia. Por dentro, eu chorava. Sabia que ele estava se despedindo de nós.

Sinto sua falta, amado irmão monge e mentor. O mundo hoje mais que nunca precisa de artistas espirituais. Precisamos de artistas que tenham medo de algo mais do que seus fracassos pessoais, que se curvem perante algo maior que likes, legados e a criação de cultura.

Em um mundo repleto de pessoas dispostas a tudo para subir, farsantes e oportunistas, de nossas esquinas e igrejas até os pináculos de Washington, você era o que há de realmente bom. Só você podia dar voz a esses tempos sombrios, mas quando chamo seu nome só ouço o nobre silêncio.

SHOZAN JACK HAUBNER é monge budista e escritor. Seu segundo livro, "Single White Monk: Tales of Death, Failure, and Bad Sex (Although Not Necessarily in That Order)" [monge branco solteiro: histórias de morte, fracasso e sexo ruim (mas não necessariamente nessa ordem)], será publicado em 2017.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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