Folha de S. Paulo


Crítica

Autobiografia de Springsteen é honesta como suas canções

Acaba de sair no Brasil o livro de memórias de Bruce Springsteen, "Born to Run" (nascido para correr). Essa autobiografia é como a música do compositor: honesta, frequentemente emocionante e cheia de boas histórias.

De todos os cantores/compositores americanos que estouraram na década de 1970 e foram influenciados tanto pela música country quanto pelo pop dos Beatles –gente como Neil Young e Tom Petty–, Springsteen é o de maior sucesso comercial e o único que ainda lota estádios.

Isso se explica pela qualidade e acessibilidade de sua música. Ele escreve canções extremamente pessoais, mas capazes de atingir a um público amplo. Seu livro segue o mesmo caminho.

Nascido em 1949, em uma família de descendência irlandesa, holandesa e italiana, Bruce cresceu em Freehold, uma pequena cidade proletária no estado de New Jersey (nordeste dos Estados Unidos), lugar parado no tempo, onde a cena musical estava atrasada em pelo menos uma década.

Reprodução
Bruce Springsteen em fotografia da capa da caixa 'Tracks', que traz quatro CDs com gravações entre 1972 e 1998
Bruce Springsteen em fotografia da capa da caixa 'Tracks', que traz quatro CDs com gravações entre 1972 e 1998

Sua mãe, Adele, era dona de casa; o pai, Douglas, vivia de emprego em emprego, jogava sinuca, bebia além da conta e não ligava muito para os três filhos.

Na primeira parte do livro, Springsteen fala de sua infância e adolescência em Freehold, da paixão por Elvis Presley e do impacto de ver os Beatles no programa de Ed Sullivan, em 1964.

TRABALHO

A descrição de família, amigos e vizinhos é muito rica e comovente. Dá para entender como a vida naquela pequena cidade de pessoas muito trabalhadoras e sem grandes perspectivas de ascensão social moldou a música de Springsteen, sempre voltada para histórias tristes sobre gente simples.

Bruce adorava a música country de Hank Williams, a soul music de James Brown e o pop de Beatles e Stones. Já adulto, ficou obcecado pelo cinema "noir" dos anos 1940, cheio de histórias detetivescas sobre mulheres fatais e policiais misteriosos, e pelos livres tristes e góticos de William Faulkner.

Também era fã dos romances policiais violentos de Jim Thompson, e diz que a simplicidade e crueza das histórias de Thompson influenciaram suas letras.

Desde muito jovem, Bruce tinha um temperamento obsessivo. Ainda adolescente, decidiu largar os estudos para dedicar-se à música. Sabia que não tinha a melhor voz do mundo e que estava longe de ser o melhor guitarrista da cena, então teria de compensar com muito trabalho.

Aos 15 anos, já tocava em bandas como The Castiles. Aos 19, vivia de música, tocando no grupo Steel Mill, grande sensação local.

Era uma vida dura: Bruce relata incontáveis horas tocando para públicos minguados em botecos vagabundos e viagens de mil quilômetros em meio a nevascas para tocar em algum boteco. O conjunto atraía públicos de duas ou três mil pessoas, mas Bruce não estava satisfeito.

Ele queria ter sua própria banda e fazer seu próprio som. Assim, largou o Steel Mill e o que parecia ser uma carreira segura e montou seu primeiro grupo solo, que daria origem, pouco depois, à famosa E Street Band.

HUMILDADE

Diferentemente de muitos artistas que não conseguem ter o distanciamento crítico para falar de suas obras, Springsteen é capaz de analisar o próprio trabalho com clareza e boa dose de humildade. É revelador ler sobre o processo de composição de discos como "Born to Run" (1975), "The River" (1980) e "Born in the USA" (1984).

Springsteen conta as inspirações de cada trabalho e detalha a maneira como tenta se colocar na pele dos personagens de suas músicas:

"Meus discos são sempre o som de alguém tentando entender onde estão sua alma e seu coração. Eu imagino uma vida, passo a vivê-la, e vejo se ela me serve."

O livro também traz histórias marcantes sobre a vida na estrada, o relacionamento com seus parceiros da E Street Band, como o saxofonista Clarence Clemons e o guitarrista Steve Van Zandt, e encontros com Bob Dylan, Frank Sinatra e os Stones.

Mas os momentos mais reveladores são os que descrevem sua longa batalha contra a depressão e os últimos anos da vida do pai, que sofria de problemas psiquiátricos e com quem Bruce acaba por fazer as pazes.

BORN TO RUN
EDITORA: Casa da Palavra-Leya
QUANTO: R$ 69,90 (496 págs.)

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Leia trechos em que Bruce Springsteen fala de seus discos:

"Greetings from Asbury Park, N.J" (1973)
Após o lançamento, ouvi todas as comparações com Dylan, por isso me afastei desse caminho. Contudo, as letras e o espírito de "Greetings" vinham de um lugar inconsciente. As nossas primeiras canções surgem num momento em que as escrevemos sem ter certeza de que vamos ser ouvidos. E isso só acontece uma vez.

"Born to Run" (1975):
Pouco a pouco, fui encontrando palavras que eu conseguiria cantar com determinação, naquilo que sempre foi o meu primeiro e único critério para prosseguir na escrita. Pouco a pouco, senti que aquilo se tornava crível. E, então, ali estava a pedra de toque, o mapa de navegação para o meu novo disco, embrulhado num cenário de filme de baixo orçamento e num rumor de carros velozes, o que trazia àquela ideia um certo tom vulgar, servindo à perfeição a intenção de minar a eventual pretensão das canções.

"The River" (1980)
"The River" seria o meu primeiro álbum em que o amor, o casamento e a família ocupariam cautelosamente a fila da frente.(...) Depois da gravação fortemente controlada de "Darkness on the Edge of Town" [disco anterior, lançado em 1978], eu queria que esse disco tivesse a aspereza e a espontaneidade dos nossos shows. Queria um som mais desleixado.

"Born in the USA" (1984)
"Born in the USA" se mantém como uma das minhas melhores e mais incompreendidas canções. A combinação dos seus versos blues "para baixo" e do refrão declarativo "para cima", a exigência do direito de ter uma voz patriota "crítica", juntamente com o orgulho do lugar onde se nasce, parecia ser conflituosa demais (ou então era simplesmente incômoda!) para alguns dos ouvidos mais despreocupados e menos perspicazes.

"The Ghost of Tom Joad" (1995)
Resultou de um debate interior após o sucesso de 'Born in the USA'. O debate era: qual o lugar de um homem rico? Se era verdade ser 'mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus', eu não transporia essas portas.

"The Rising" (2002)
Teve suas origens na maratona televisiva que se seguiu ao 11 de Setembro. Uma das imagens trágicas que não me saía da cabeça era a dos bombeiros subindo as escadas enquanto outros se apressavam em descer. O sentido de dever, a coragem"¦ instigou a minha imaginação.


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