Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Arte brasileira é tributária da inquietude de Ferreira Gullar

No dia 6 de outubro deste ano, numa livraria no centro do Rio, Ferreira Gullar participou do relançamento de seu clássico "Poema Sujo". Por mais de uma hora, falou com entusiasmo para uma plateia formada sobretudo por jovens.

Na ocasião, contou como seu livro "A Luta Corporal", publicado em 1954, o aproximou do movimento concretista. Alguns poemas daquele trabalho traziam a preocupação com a disposição dos versos na página em branco e colocavam em primeiro plano a sonoridade da palavra.

Desde o início dos anos 1950, um grupo de poetas de São Paulo, liderado por Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, defendia a produção poética nessa direção -o poema deveria ter uma dimensão "verbivocovisual", ou seja, abarcar a dimensão não apenas do verbo mas do som e de seu aspecto plástico.

O concretismo não se restringia à poesia. Ele representava uma atitude frente à produção artística que abarcava todas as manifestações. A tentativa de representação da realidade estava fora de cogitação. Era preciso testar os limites da pintura, num processo de abandono da tela como mero suporte de uma figura sobre um fundo.

No fim de 1956, a 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta, realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo, reuniu artistas de todo Brasil em torno dessa proposta. Gullar participou com o poema "O Formigueiro", que dispunha em grandes folhas de papel versos desencontrados que sugeriam a movimentação de formigas.

Quando a exposição foi para o Rio de Janeiro, no início do ano seguinte, começaram as divergências no movimento. Gullar trabalhava para o "Suplemento Dominical do Jornal do Brasil", principal porta-voz das ideias concretistas. Recebeu, na ocasião, um artigo de Haroldo de Campos que defendia a composição das obras concretas a partir de fórmulas matemáticas.

Ele discordou daquela posição e publicou, ao lado do artigo de Campos, uma resposta que defendia a preservação da experiência na obra de arte concreta.

Começou aí o desentendimento que ficou conhecido como "neoconcretismo". Gullar foi o líder teórico de um grupo de artistas plásticos e poetas, entre os quais estavam Hélio Oiticica e Lygia Clark, que propôs um rompimento com o concretismo.

Isso se deu em 1959, com a publicação do "Manifesto Neoconcreto" e a organização da primeira exposição do grupo, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

A principal bandeira do manifesto era justamente o "retorno à experiência", contra os supostos "excessos racionalistas" do grupo concreto. A arma teórica de que se valeu para isso foi a fenomenologia do francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961).

O grupo neoconcreto manteve-se unido por pouco tempo. Fez apenas quatro exposições e dissolveu-se em 1961, quando Gullar mudou-se para Brasília para dedicar-se a atividades políticas.

Na poesia, o legado do neoconcretismo é pouco expressivo. São episódicas as tentativas em torno do "poema neoconcreto", e o próprio Gullar gostava de ironizar seus experimentalismos.

Nas artes visuais, porém, o neoconcretismo vingou. Graças à contundência do manifesto escrito por Gullar e aos trabalhos produzidos naquele período pelo talentoso conjunto de artistas que estava a seu redor, o grupo se consolidou na narrativa em torno das artes no Brasil como pioneiro da arte contemporânea.

Trabalhos como os bichos de Lygia Clark ou os relevos espaciais de Hélio Oiticica partiam da grade de valores concretista, mas propunham novidades. Seu sentido não se esgotava em fórmulas preestabelecidas, mas deixava espaço para a subjetividade do artista e era completado pela participação do espectador.

Boa parte da arte brasileira produzida desde então é tributária desse processo, flagrado no calor da hora pela inquietude e pela notável verve intelectual que Ferreira Gullar manteve até o fim da vida.

FLÁVIO MOURA, doutor em sociologia pela USP com tese sobre o neoconcretismo, é editor da obra de Ferreira Gullar na Companhia das Letras.


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