Folha de S. Paulo


crítica

'A Espiã' tem triângulo complicado de entreter, narrar e edificar

"A Espiã" permite caracterizar os pontos cardeais da escrita de Paulo Coelho. Tal deve ser a tarefa de uma crítica que se deseje contemporânea: enfrentar os desafios do aqui e agora.

O romance ficcionaliza a vida e, sobretudo, os últimos momentos de Mata Hari, executada na França em 15 de outubro de 1917 sob a acusação de auxiliar a Alemanha na Primeira Guerra Mundial.

Destaquemos a própria narrativa, cuja arquitetura atesta um domínio técnico ausente nos títulos iniciais do autor.

"A Espiã" principia com uma reportagem, na forma de prólogo, que descreve os momentos finais de Mata Hari.

A primeira e a segunda parte dão voz à protagonista. Numa longa carta, endereçada a seu advogado, a dançarina reflete sobre sua vida.

Na terceira parte, numa estrutura contrapontística, emerge a voz do advogado, além de outra reportagem. Contraponto que amplia a perspectiva do relato, não mais limitado às memórias da protagonista.

No epílogo, surge a voz do narrador, rematando a trama e esclarecendo os desdobramentos da história. Mencione-se ainda o recurso visual, aqui e ali empregado na reprodução de fotografias e documentos.

Vale dizer: por que ler o escritor de "A Espiã" como se ele estivesse aprisionado ao autor de "O Diário de um Mago" e "O Alquimista"? É grande a diferença entre esses títulos e a produção recente de Paulo Coelho.

Caminho desimpedido, podemos caracterizar sua escrita, um dos exemplos mais bem-sucedidos do que se convencionou denominar ficção comercial. Dois elementos definem o gênero.

Em primeiro lugar, a associação bem resolvida de entretenimento e narrativa. Tal opção favorece a redundância como forma, patrocinando a fluência da leitura na resolução antecipada de possíveis dúvidas.

Exemplo: a mãe de Mata Hari oferece à filha "sementes de girassol", adicionando à guisa de lição de vida: "Por mais que queiram, jamais poderão transformá-las em rosas ou tulipas, o símbolo de nosso país."

Por que revelar a uma holandesa que a tulipa é "o símbolo de nosso país"? Porque, no fundo, a informação é dirigida ao leitor. A ficção comercial atualiza o princípio horaciano: entretém e, ao mesmo tempo, instrui!

A passagem ainda singulariza a escrita de Paulo Coelho, estabelecendo uma ponte entre o letrista e o romancista. Sua ficção acrescenta ao dístico horaciano a edificação, própria das fábulas. Daí, sua escrita busca atar os vértices de um peculiar triângulo, que pretende narrar, entreter e edificar.

Por fim, o autor projeta, anacronicamente, temas contemporâneos na trama. Em "A Espiã", flerta com o feminismo, sem contudo aprofundar a discussão -claro está.

Rematamos assim a caracterização inicial da escrita de Paulo Coelho; salvo engano, passo necessário para tentar entender o êxito global de sua ficção.

JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA é professor de literatura comparada da UERJ

*

A ESPIÃ
AUTOR Paulo Coelho
EDITORA Paralela
QUANTO: R$ 29,90


Endereço da página: