Folha de S. Paulo


Análise

Poesia de Gullar está enraizada em contradições, erros e acertos

Na obra de poeta de Ferreira Gullar, há pelo menos dois livros culminantes: "A Luta Corporal" (1954) e "Poema Sujo" (1977). Sobre o primeiro deles, pude observar que os poemas ali reunidos ainda incomodam pela novidade e pela potente diversidade.

"A Luta Corporal" é um livro de força e de crise, uma vez que os seus poemas vão pouco a pouco sendo desintegrados por meio de uma investigação obsessiva da linguagem, até que Ferreira Gullar escreve "Roçzeiral". Poema louco, poema sem pé nem cabeça, no qual escassas palavras fazem sentido, e outras devem ser adivinhadas. Exemplo: "UILÁN / UILÁN, / lavram z'olhares, flamas! / CRESPITAM GÂNGLES RÔ MASUAF / Rhra".

Pode ter sido esse ímpeto destrutivo e essa tamanha desconfiança com a linguagem (tudo isso mergulhado numa admiração pelo simbolismo onírico de Rimbaud e de Lautréamont) que encaminharam Ferreira Gullar ao seu engajamento com o concretismo e, em seguida, em gesto de recusa ao alto formalismo daquele movimento, ao seu rompimento. Crítico de artes plásticas, o poeta sempre quis privilegiar as pesquisas de Matisse, Mondrian, Miró, Calder.

No Brasil, Amílcar de Castro, Lygia Clark, Lygia Pape atraíam o seu interesse –e também Emygdio de Barros, descoberto em um sanatório psiquiátrico pela doutora Nise da Silveira, e assim mencionado pelo poeta: "é talvez o único gênio da pintura brasileira. (..) Um gênio é uma solidão fulgurante, ultrapassa as medidas e as categorias. (...) Raramente alguma obra pictórica foi capaz de nos transmitir a sensação de deslumbramento que recebemos de seus quadros. (...) A ruptura com o mundo objetivo precipitou-o numa aventura abismal, em que o espírito parece quase perder-se na matéria do corpo, afundar-se no seu magma. E é daí, desse caos primordial, que ele regressa, trazendo à superfície onde habitamos, com suas imagens fosforescentes, os ecos de uma história outra, que é também do homem, mas que só a uns poucos é dado viver."

É justamente essa difícil combinação entre o intenso formalismo e a "ruptura com o mundo objetivo", rumo ao sonho, que define a poesia do próprio Ferreira Gullar: está enraizada nas suas oscilações, nas suas contradições, nos seus erros e nos seus acertos. O poeta, comunista por fim exilado, escreveu cordel e escreveu teatro engajado, pois queria transformar a vida a partir da sua rígida doutrina. E, no exílio, escreveu outra obra-prima, que atirava longe os ditames do Centro Popular de Cultura, vinculado à União Nacional Estudantes: o "Poema sujo".

Livro-poema, livro-cinema, livro totalizante que parte da escuridão (seus primeiros versos são "turvo turvo / a turva / mão do sopro / contra o muro / escuro / menos menos / menos que escuro"), o "Poema sujo" se desdobra em vários planos, o da memória sobretudo, mas também o da história e o da indagação metafísica, se não existencialista: "meu corpo de 1,70m que é meu tamanho no mundo / meu corpo feito de água / e cinza / que me faz olhar Andrômeda, Sírius, Mercúrio / e me sentir misturado / a toda essa massa de hidrogênio e hélio / que se desintegra / sem saber pra quê".

No momento em que sou informado da morte do poeta, esses versos vibram: em nós, seus leitores, que sabemos o tamanho de Ferreira Gullar na poesia; que poderemos olhar estrelas e planetas e, agora, lembraremos de um poeta que não se desintegra.

FELIPE FORTUNA é poeta, ensaísta e diplomata. Lançou recentemente "O Mundo à Solta" (Topbooks) e "Taturana" (Pinakotheke).


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