Folha de S. Paulo


Crítica

Pablo Fendrik leva trama delirante a sério demais em 'O Ardor'

Os diálogos são esparsos e solenes. As frases mais comezinhas são proferidas como em uma leitura de Kierkegaard

A proposta de "O Ardor" é arriscada: um western esotérico-ecológico passado nas selvas argentinas.

Na trama e na forma, esta produção Argentina-Brasil com elenco internacional é um faroeste quase clássico: bandidos ameaçam tomar a fazenda de um plantador de fumo (Chico Diaz), onde ele vive com a filha (Alice Braga) e o genro (Lautaro Vilo).

Divulgação
Créditos: Divulgação Legenda: Cena do filme
A brasileira Alice Braga e o mexicano Gael García Bernal em cena de 'O Ardor'

Mas a família é defendida por um homem misterioso (o mexicano Gael García Bernal, também produtor do filme), que surge do nada quando a fazenda é atacada. O "quase" antes do "clássico" tem a ver com a figura desse forasteiro.

Como explica um letreiro no início do filme, os moradores das florestas do Paraná praticam há séculos rituais em que invocam a aparição de seres que chegam pela correnteza do rio para ajudá-los quando se sentem ameaçados.

Aí entra o elemento esotérico do filme: o personagem de Bernal é esse ser sem nome e de difícil definição, talvez um xamã, talvez a encarnação de uma onça-pintada, talvez o próprio espírito da floresta.

Já o elemento ecológico, coadjuvante, é uma tentativa de emprestar um dado contemporâneo à história: as fazendas da região são griladas e queimadas pelos bandidos para serem transformadas em plantação de soja.

"O Ardor" propõe esse curioso encontro entre os universos de "Sete Homens e Um Destino" e "Ele, o Boto". Entre "Matar ou Morrer" e "Avatar". Entre "Os Imperdoáveis" e "Pantanal" (sim, a novela da Manchete).

Para que essa combinação peculiar desse certo, seria necessário assumir todos os riscos contidos na proposta, ir fundo em seus aspectos mais delirantes, seja pelo caminho da alegoria ou da farsa, dos quadrinhos ou do novelesco.

Mas o diretor argentino Pablo Fendrik fez uma opção pelo realismo sóbrio. A dramaturgia calcada no western não poderia ser mais básica: há o assassinato do patriarca, o sequestro da filha, voltas e reviravoltas levando para o indefectível duelo final.

Os diálogos são esparsos e solenes. As frases mais comezinhas são proferidas como em uma leitura de Kierkegaard.

Na primeira sequência da inevitável tensão sexual entre o forasteiro e a filha do fazendeiro, ele se oferece para ajudá-la na cozinha. Ela responde: "Tem que descascar a mandioca". Segurando uma grossa raiz. E sem ponta de ironia. É uma cena que nos lembra que a comédia voluntária é sempre preferível à involuntária. E que deixa a sensação de que dois ótimos atores foram subaproveitados porque o diretor não encontrou o tom para a trama.

Na linguagem, as referências vêm mesmo do faroeste: um homem voando pelos ares em câmera lenta que remete a Sam Peckinpah, uma trilha sonora que dá uma piscadela para o Ennio Morricone de "Era uma Vez no Oeste".

A única citação que assume o pastiche vem no duelo final, quando no meio do nada toca um sino sem que haja igreja à vista. É um raro momento de leveza em meio à pompa. Se Fendrik se permitisse brincar mais com o gênero e levasse seu material menos a sério, "O Ardor" talvez fizesse jus a seu título.

O ARDOR (EL ARDOR)
DIREÇÃO Pablo Fendrik
ELENCO Gael García Bernal, Alice Braga, Chico Diaz
PRODUÇÃO Argentina/Brasil, 2014, 14 anos
QUANDO: em cartaz


Endereço da página: