Folha de S. Paulo


CRÍTICA

'Atlas de Nuvens' revela gênio fabulador de David Mitchell

O escritor inglês Somerset Maugham definiu o romance como a mistura do pó medicinal de uma mensagem à geleia açucarada de uma narrativa. Essa ideia do romance como algo feito de duas substâncias, uma fácil de engolir, a outra nem tanto, dá o que pensar diante dos livros de David Mitchell, a começar pelo mais conhecido, "Atlas de Nuvens" –adaptado no cinema em 2012 como "A Viagem"–, lançado agora no Brasil.

Mitchell, também inglês, é um dos melhores fabricantes de geleia da literatura atual. Sua facilidade para concatenar enredos, transitar entre tempos e gêneros (do romance histórico ao futuro da ficção científica) e assumir diferentes vozes numa mesma obra beira o miraculoso.

Sua estreia, "Ghostwritten" (1999), já tinha arquitetura exuberante. Em "Atlas de Nuvens" ele atinge o virtuosismo formal que não deixou mais de exibir. Mas já surgia a pergunta sobre o pó da mensagem e o sabor que ele deixa.

Divulgação
Cena do filme
Cena do filme "A Viagem", das irmãs Wachowski, baseado em livro de David Mitchell

"Atlas de Nuvens" é um mosaico de seis narrativas. Uma delas se passa nas ilhas do Pacífico, no século 19. Outra na Europa, depois da Primeira Guerra. Uma terceira, na Califórnia dos anos 1970. A quarta, nos dias de hoje. A quinta na Coreia, num futuro distante. E a sexta em um mundo pós-apocalíptico.

Todas exceto a última, que funciona como um pivô, são quebradas em dois fragmentos. Numa metade do livro vêm em sequência cronológica. Na outra, em ordem inversa.

É típico de Mitchell que a estrutura seja descrita, com uma pequena variação, em suas próprias páginas. Quem o faz é o narrador de uma das histórias, o jovem compositor inglês Robert Frobisher.

Ele trabalha em um "sexteto para solistas sobrepostos", mais tarde batizado, adivinhem, de "Atlas de Nuvens". Os solos de piano, clarinete, violoncelo, flauta, oboé e violino recebem, diz Frobisher, cada um o seu próprio idioma de tonalidade, escala e cor.

É difícil fugir da palavra: intervenções "metalinguísticas" como essa surgem a cada página. Os personagens de uma narrativa são mencionados em outra. Temas reaparecem, modificados, mais ou menos como numa obra musical. Para usar uma expressão do livro, tudo funciona como um "quebra-cabeça forçado".

Forçado? Além da estrutura complexa, há muita riqueza de linguagem. Há trechos de uma elegância perfeita, enquanto a seção no mundo pós-cataclisma é toda escrita num dialeto estropiado. (Quanto a isso, o filme dirigido pelas irmãs Wachowski não faz justiça ao livro, porque tende a aplicar a tudo um mesmo tom de farsa.)

Há também riqueza de experiência, paixões e angústias humanas reais em cada história. Poderia bastar, mas Mitchell não resiste a oferecer duas ideias-mestras ao leitor, levando o jogo, talvez, mais longe do que o necessário.

Uma das ideias é a da vontade de poder, que atravessaria a história levando, paulatinamente, à ruína da civilização. A outra é a da transmigração das almas. Essa é recorrente nos livros de Mitchell, que encontrou nela uma ferramenta de unificação de seus mosaicos de histórias.

PRIORIDADES

O problema é que Mitchell nem de longe dedica à discussão dessas ideias o mesmo tempo que dedica aos outros aspectos do seu trabalho. Se o autor as leva a sério, tratou-as de forma banal. Caso contrário, elas estão ali apenas para não deixar nenhum detalhe do livro entregue à sorte ou à livre interpretação.

Em anos recentes, surgiram tentativas de entender o impulso humano de narrar em termos de biologia evolutiva. A mente que tece narrativas seria uma adaptação crucial, por sua capacidade de impor coerência ao mundo e à nossa experiência. Ela seria avessa à falta de significado. Se for assim, Mitchell é o exemplar supremo do Homo fictus, o grande símio fabulador.

Mas a literatura há muito tempo tem espaço para obras de estrutura e de sentido abertos. E é por isso que alguns exemplares do Homo criticus começam a perder um pouco da boa vontade com Mitchell, mesmo reconhecendo o seu gênio de narrador. Escreve James Wood, da revista "New Yorker", a respeito do romance "The Bone Clocks" (2014), que repete os mecanismos de "Atlas de Nuvens": "Mitchell tem muito a contar, mas ele tem muito a dizer?".

Atlas De Nuvens
David Mitchell
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Em tempo: descobriu-se que há dezenas de diferenças, algumas significativas, entre as edições inglesa e americana de "Atlas de Nuvens". Isso porque os originais foram mandados por engano aos EUA sem uma revisão final de Mitchell. A excelente tradução brasileira foi feita com base no texto inglês.

ATLAS DE NUVENS
AUTOR David Mitchell
TRADUÇÃO Paulo Henriques Britto
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 74,90 (544 págs.) e R$ 39,90 (e-book)


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