Folha de S. Paulo


Mostra revela como Gaudí extraiu da natureza suas formas fantásticas

Quase um século e meio depois que a Sagrada Família, obra-prima de Antoni Gaudí, começou a ser construída em Barcelona, arquitetos da metrópole espanhola ainda limitam a altura de seus arranha-céus para que nenhum deles ultrapasse as torres da catedral desenhada pelo mestre modernista e até agora não concluída.

Neste ano, as quatro mais altas delas entram na reta final da construção, devendo espetar o céu da cidade a 170 metros de altura até 2020. Enquanto isso, um dos poucos projetos de Gaudí fora da Espanha começa a tomar forma na distante Roncagua, no Chile, uma pequena capela modelada a partir de um detalhe da igreja barcelonesa.

Em alta, a obra de um dos arquitetos mais exuberantes da história agora é alvo de uma grande exposição no Instituto Tomie Ohtake. Nada ali, no entanto, tenta imitar as visões fantásticas de Gaudí.

Josep Lago/AFP
Teto da catedral Sagrada Família, desenhada por Antoni Gaudí em Barcelona
Teto da catedral Sagrada Família, desenhada por Antoni Gaudí em Barcelona

Maquetes brancas e assépticas, poucas fotografias e muitos modelos tridimensionais de estruturas metálicas, alguns deles ocupando todo o átrio do centro cultural, se esforçam para destrinchar a raiz matemática e natural de suas formas, desvendando como ficam de pé suas construções que parecem moldadas à mão.

Nascido em 1852 em Reus, na Catalunha, e associado a um movimento de construção da identidade catalã no fim do século 19, momento em que a burguesia chegava ao auge de seu poder econômico, Gaudí aderiu só em parte à vanguarda arquitetônica que despontava na época, com elementos neogóticos e referências ao passado medieval da cidade.

Suas obras mais emblemáticas, na verdade, parecem estar ancoradas numa pesquisa pessoal e isolada, que tentou extrair da natureza estruturas e formas básicas que se repetem, daí o aspecto orgânico de suas construções.

"Gaudí é um estilo próprio", diz o espanhol Raymon Ramis, que organiza a mostra. "É um personagem esponja, que absorveu todas as influências para seguir o conceito de obra total. Ele se preocupava em igual medida com a porta de um armário e com o aspecto de toda a fachada."

É claro que alguns dos floreios e excessos de suas obras surgiram em total sintonia com a estética art nouveau em voga na Europa fin-de-siècle, quando metal e madeira ganhavam a volúpia de caules, raízes e flores exóticas.

Na mostra, um trecho dos portões da Casa Vicens, a primeira que construiu, responde por esse seu aspecto mais maneirista, a cópia escultural da vegetação que havia no lugar onde o prédio foi erguido. Seus móveis ergonômicos para as casas Calvet e Batlló também parecem próteses ou extensões do corpo humano.

Mas, muito além disso, Gaudí foi uma espécie de anatomista dessas formas naturais num processo de construção ligado à filosofia modernista da verdade dos materiais, ou seja, a visão da estrutura arquitetônica como um espetáculo a ser celebrado.

PELE E ESQUELETO
Nesse sentido, ele era mais esqueleto e menos pele, como atesta ali a ossada de uma cobra que estudou para construir as arcadas arfantes da Sagrada Família.

Fotografias das correntes que pendurava em seu ateliê para testar o comportamento dos arcos com a aplicação de cargas específicas impressionam pela complexidade e beleza, chegando a lembrar esculturas minimalistas ou mesmo os móbiles de Calder.

Toda essa flexibilidade, no entanto, tem raízes sólidas na geometria. Gaudí foi um arquiteto-matemático, atento ao comportamento de curvas e linhas -catenárias, hiperboloides, paraboloides- para criar estruturas ao mesmo tempo firmes e elegantes.

O teto do colégio para os operários da Sagrada Família, que construiu ao lado da igreja, por exemplo, segue esse princípio de retas equilibradas em ângulos distintos sobre um eixo central. Longe de ser um efeito plástico vazio, a forma ondulada da cobertura resulta de um cálculo estrutural preciso, indicando que assim o telhado seria mais estável.

"Essas formas já existiam na natureza", diz Ramis. "Mas ele aplicou isso à arquitetura, levando essas ideias à sua máxima consequência."

ARRANHA-CÉUS
Na Pedrera, uma de suas últimas obras, Gaudí chegou ao auge de sua ousadia estrutural, criando um esqueleto metálico para o prédio que liberava as paredes internas e a fachada de qualquer função de sustentação. Ou seja, tudo na casa podia tomar a forma escultural que ele imaginasse.

Uma maquete da obra cortada ao meio deixa ver, aliás, como seus cômodos se desenham de forma fluida, tal qual as estruturas de uma célula vistas num microscópio.

"Ele fazia ali o mesmo que os arquitetos dos arranha-céus de Chicago fariam mais tarde", diz Ramis. "São formas autoportantes, sem muletas."

Mas Gaudí não chegou a terminar sua única estrutura com o porte de um arranha-céu. Há 90 anos, aos 73, morreu atropelado por um bonde na porta da Sagrada Família.

Seus desenhos e plantas para a igreja se perderam durante a Guerra Civil Espanhola, na década de 1930, e só uma maquete, que Ramis chama de "sua cosmovisão, seu livro de arquitetura" orienta agora aqueles que tentam terminar a obra -nas previsões mais otimistas, a catedral ficará pronta em 2026, no aniversário de cem anos de sua morte.

ANTONI GAUDÍ
QUANDO abre neste sábado (19), às 11h; de ter. a dom., das 11h às 20h; até 5/2/2017
ONDE Instituto Tomie Ohtake, r. Coropés, 88, tel. (11) 2245-1900
QUANTO R$ 12, grátis às terças


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