Folha de S. Paulo


Visão oriental da morte é tema de romance de Valter Hugo Mãe

"Eu tenho certeza de que, quando eu morrer, vou morrer puto da vida." Destoando completamente de seu tom calmo e pausado de falar, Valter Hugo Mãe, 45, faz o desabafo em voz alta e dá uma risada nervosa.
Assim, encerra o relato sobre como foi sua investigação a respeito da relação dos orientais com a morte.

Esse é o tema central de seu novo romance, "Homens Imprudentemente Poéticos", que sai agora no Brasil.

O enredo do livro ocorre em um tempo algo indefinido da história, na famosa Floresta dos Suicidas, próxima ao monte Fuji, no Japão, onde a cada ano, há tempos, dezenas de pessoas rumam para terminar com suas vidas, enforcando-se em árvores.

Eduardo Anizelli/Folhapress
Sabatina com o escritor português Valter Hugo Mae, na livraria Cultura em São Paulo
Sabatina com o escritor português Valter Hugo Mae, na livraria Cultura em São Paulo

"É um lugar famoso por isso, historicamente, mas o interessante é que não se trata de ir lá apenas e matar-se. Há todo um ritual, as pessoas viajam dentro da mata com seus pertences, roupas, montam acampamento e ficam dias, às vezes semanas, refletindo sobre sua vida", conta, em entrevista à Folha, em um hotel de São Paulo.

"Ao final, alguns chegam à conclusão de que, sim, sua vida completou um ciclo e que, portanto, eles podem entregar-se à morte, à divindade. E se enforcam. Outros não. Eles voltam, mas voltam não porque lhes faltou coragem ou porque ficaram com medo de morrer, mas porque ali, dentro da floresta, chegaram à conclusão de que têm algo mais a fazer, ou a dizer a alguém no mundo."

Para ir e, eventualmente, voltar desse retiro na floresta, os potenciais suicidas vão desenrolando uma fita colorida, amarrada às árvores, que lhes serve de guia caso desistam da morte.

"É uma sensação muito forte caminhar por onde caminharam, ver seus utensílios, os restos de seus acampamentos, roupas, é como se estivéssemos caminhando no subsolo de um cemitério, vendo coisas que supostamente não deveríamos ver", diz.

Ao final de cada ano, as autoridades japonesas fazem uma espécie de varredura na Floresta dos Suicidas, e recolhem dezenas de corpos.

TOLERÂNCIA

Mãe diz que tudo isso o intrigou muito porque há vários anos vem abordando a morte em seus livros e refletindo sobre ela.

"Ainda tenho muita dificuldade em não ver a morte como uma brusca interrupção, uma violenta abreviação da existência de alguém. E não é assim no Oriente, de uma forma geral", afirma.

"A Floresta dos Suicidas me deu uma nova dimensão disso tudo. Ainda que eu ainda esteja convencido de que vou morrer inconformado", conclui, rindo.

O sétimo romance do autor se passa numa aldeia aos pés da montanha e à entrada da floresta em questão. No local vivem algumas figuras que, segundo Mãe, representam características da cultura japonesa, de forma atemporal.

Estão ali o artesão Itaro, que faz leques e tem visões sobre o futuro, o oleiro Saburo, cuja mulher é vítima de uma fera fantasmagórica, a menina cega Matsu, que parece guardar a sabedoria do local, e outros personagens.

Itaro e Saburo não se aturam. O primeiro é violento, inquieto, agressivo, o outro, passivo e tranquilo.

"O Japão é coberto por estereótipos que o fazem difícil de entender desde fora. O que quis trabalhar, especialmente com esses personagens, foi essa ideia generalizada que temos de se tratar de um país cordial, marcado pela gentileza e a submissão a uma divindade, mas ao mesmo tempo, vemos que seus indivíduos são capazes de uma imensa agressividade."

Para Mãe, o fato de os dois, que se opõem tanto entre si, serem capazes de viver juntos na mesma aldeia a vida toda, é também um recado ao mundo de hoje.

"Queria que fôssemos capazes desse antagonismo cordial, de uma inimizade educada. Isso sempre existiu, especialmente em comunidades pequenas, no Japão ou em outras partes do mundo. O que me choca nos dias de hoje, e vemos isso nos fatos políticos recentes, é que estamos entrando num período de violenta polarização, de um súbito extremismo, em que as pessoas votam porque têm raiva de outro ou de uma ideia diferente da sua."

O autor reforça que o fato de sempre escolher personagens que têm trabalhos manuais, artesanais, também é um questionamento ao nosso tempo.

Homens Imprudentemente Poéticos
Valter Hugo Mãe
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"Vivemos uma artificialidade que nos separa cada vez mais da ideia da morte, principalmente no Ocidente".

E conclui, algo divertido. "E eis que meu livro, tratando de um fazedor de leques e um fabricador de coisas de barro, tenta entender essa complicada sociedade contemporânea e essas reviravoltas políticas recentes", ri.

HOMENS IMPRUDENTEMENTE POÉTICOS
AUTOR Valter Hugo Mãe
EDITORA Biblioteca Azul
QUANTO R$ 44,90 (182 págs.)


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