Folha de S. Paulo


Aposta da França para o Oscar, thriller 'Elle' polemiza ao tratar de estupro

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Sentada à mesa de um restaurante parisiense, entre rodadas de champanhe, a executiva Michèle pede a palavra: "Acho que fui estuprada", anuncia, com a fleuma que notabiliza sua intérprete, a atriz Isabelle Huppert.

Os comensais ficam desconcertados com o anúncio, propalado assim, na lata. Foi com estupefação similar que a crítica encarou "Elle", thriller psicológico dirigido por Paul Verhoeven que fechou a última edição do Festival de Cannes, em maio, e estreia nesta quinta (17), no Brasil.

"Elle" foi o filme escolhido pela França para tentar cravar uma indicação ao Oscar.

Enquanto algumas resenhas não economizaram na expressão "empoderamento feminino" para elogiá-lo, também houve quem questionasse por que uma trama sobre a revanche de uma mulher estuprada foi cair justamente nas mãos de um cineasta tido como misógino.

"Não sou misógino", responde Verhoeven, sentado no terraço de um hotel cinco estrelas em Cannes, onde recebeu um pequeno grupo de jornalistas que incluiu a Folha, após a estreia do filme no festival. "O que se faz na arte é diferente do que se é na vida", diz, entregando sua origem holandesa a cada sílaba do inglês que pronuncia.

A fama do machismo de Verhoeven ecoa em "Instinto Selvagem" (1992), o filme da famosa cruzada de pernas de Sharon Stone, e "Showgirls" (1995), seu longa mais depreciado e que naquele ano venceu o Framboesa de Ouro, o "Oscar do pior".

"Qualquer herói tem que superar obstáculos", diz, explicando por que as mulheres de seu filme sempre sofrem. "Se você quer criar homens ou mulheres fortes, tem que fazê-los passar por desafios. Eu prefiro as mulheres."

DESEJO INCONFESSÁVEL

A francesa Isabelle Huppert, que já escarafunchou outra mente perversa em "A Professora de Piano" (2001), cai feito luva no papel de Michèle, a empresária durona que logo na cena inicial é estuprada em sua casa por um criminoso mascarado.

A reação irracional da personagem ao crime, que será reencenado várias vezes, é ambígua, dedura um quê de perversidade na própria vítima, que parte para apurar a identidade do estuprador.

"Não é um manifesto sobre uma mulher violentada aceitando o homem que a violentou", diz Huppert. "A reação não pode ser vista como algo realista. É uma fantasia, algo que ela não pode confessar."

Todos são suspeitos: o funcionário rebelde, o ex-marido que a abandonou, o amante canalha, até o vizinho em quem ela roça as pernas por baixo da mesa, num jantar.

À reportagem, a atriz afirma que encara a empreitada de Michèle como uma "busca quase existencial por saber quem ela realmente é".

O que exacerba o tom violento e supersexualizado de tudo no que rodeia a trama de "Elle" é a perspicácia do roteiro de colocar Michèle no comando de uma empresa que cria videogames, sempre ordenando para que os jogos sejam ainda mais explícitos.

Aos outros que estão ao seu redor, a personagem se volta com seus ares de megera: caso de sua mãe, que se envolve com um gigolô mais novo, e de seu filho, que não percebe que é manipulado pela namorada. Some-se a isso uma estranha relação com o pai, um assassino.

'SEGUI O DINHEIRO'

"Elle" quebra um hiato de dez anos na tortuosa carreira de Verhoeven. Seu último longa de ficção havia sido "A Espiã", drama de guerra que marcou seu retorno à Europa, onde começou a carreira.

A partir dos anos 1980,Verhoeven migrou para Hollywood e deixou sua marca principalmente em ficções científicas carregadas de politização, violência e voltagem sexual. Vêm dessa incursão o visionário "RoboCop" (1987), sátira sobre a ascensão de polícias fascistas, "O Vingador do Futuro" (1990) e "Tropas Estelares" (1997).

"Eu segui o dinheiro", brinca o diretor, sobre seu zigue-zague entre Estados Unidos e Europa. "Fui para Hollywood porque não havia mais financiamento na Europa: achavam meus filmes muito perversos e decadentes aqui", diz. "Voltei para cá quando lá deixou de ser interessante."

O diretor de 77 anos, que ajudou a redefinir o patamar das cenas de ação no cinema americano, hoje vê com desdém a produção atual do gênero.

"Continuo assistindo para conferir efeitos especiais. Mas após 'Blade Runner', 'Star Wars' e 'RoboCop', parece que tudo virou a mesma coisa. Decaiu para Super-Homem contra Homem-Aranha. É triste."

Diz que adoraria dirigir "Millenium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres", cuja adaptação hollywoodiana ficou com David Fincher: "Eu teria feito bem melhor".

Verhoeven crê que foi a "politização camuflada em filmes de ação" que marcou sua contribuição a Hollywood: "Quando vejo a ascensão de Donald Trump, percebo que eu não estava longe".

Na disputa pelo Oscar, "Elle" aparece como um dos mais cotados para levar uma das cinco indicações para a vaga de melhor filme estrangeiro. O anúncio sai em 24/1.

Entre as principais apostas (leia abaixo), somam-se títulos com temas igualmente densos: crise dos refugiados, ditaduras, guerras -nada da platitude sentimental da escolha brasileira, "Pequeno Segredo".

ELLE
DIREÇÃO Paul Verhoeven
ELENCO Isabelle Huppert, Laurent Lafitte, Anne Consigny
PRODUÇÃO França, Alemanha, Bélgica, 2016, 16 anos
AVALIAÇÃO ótimo


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