Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Peça 'Kiwi' põe o dedo na ferida do 'legado' da Olimpíada

Os estádios faraônicos e já caindo aos pedaços, os gastos excessivos, o retorno duvidoso: o velho lema ufanista "ninguém segura este país", em alta no momento em que o Brasil foi eleito, em sequência, sede da Copa do Mundo e da Olimpíada, parece ganhar, finda a festa, um sentido mais depressivo: ninguém segura essa corrida desabalada rumo ao abismo. Assistir a uma peça como "Kiwi" só reforça essa impressão.

Embora escrita há 20 anos e por um franco-canadense –Daniel Danis–, o texto põe o dedo noutra ferida do famigerado "legado", ou melhor, da lógica desses grandes eventos: o reforço do apartheid social. Para poucos, lucros exorbitantes; para a média da população, o circo; para os pobres, a falta de pão e o "esporte" de sempre, a luta pela sobrevivência na arena de leões de nossas cidades.

Kiwi (Rita Batata) é uma menina sem pais, largada pelo tio na rua quando o governo lhes confiscou a casa em prol das instalações olímpicas numa cidade indefinida.

Numa espécie de teatro épico (mais narrado que dialogado), ela conta como foi acolhida por um grupo de jovens sem eira nem beira que exige dos participantes um novo batismo –só valem nomes de fruta ou legume– e certas regras de conduta, o que nesse caso inclui roubos, prostituição, uso e tráfico de drogas, mas não a prática de matar.

Nisso eles parecem mais "pudicos" do que muitos grupos criminosos e terroristas que encontram cada vez mais recrutas dispostos a tudo.

Na montagem de Lucianno Maza (ele ainda assina a tradução), a referência esportiva está dada desde o início, na correria quase sem fôlego de Kiwi e seu namorado Lichia (Lucas Lentini). E o tempo todo eles se movem, de uma maneira não naturalista, num tablado que remete a outro esporte, o xadrez: um tabuleiro típico, que também lembra grades, repleto de pichações.

Suas roupas chamam a atenção pela brancura maciça, do gorro aos calçados, signo de pureza em contraste com a degradação do meio ao redor. Brancos também são os pássaros que, como o sol, pontuam poeticamente o sonho de um futuro melhor desses seres à margem da vida.

Algumas falas dos atores parecem um pouco fora do tom. Lentini é dotado de uma potência vocal notável, mas que por isso mesmo precisaria dosar os momentos de explosão e de suavidade. Já Rita, atriz de muitos recursos dramáticos, resvala em certa infantilização desnecessária da voz de sua Kiwi.

Outro senão fica por conta do teatro Augusta, que, nas noites de sábado, faz a espera da plateia e os primeiros minutos da peça, na Sala Experimental, serem afetados pela lotação e ruído do andar superior, por conta do público de outros dois espetáculos.

Uma peça como "Kiwi", que perturba e comove sobretudo em seu final, merece mais respeito do espaço que a acolhe. Já basta nossa surdez cotidiana à cidadania (e mais que ela) que nos é roubada pelo sistema vigente.

KIWI
QUANDO sáb., às 21h30, e dom., às 19h; até 27/11
ONDE teatro Augusta, r. Augusta, 943, tel. (11) 3151-4141
QUANTO R$ 30
CLASSIFICAÇÃO 14 anos


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