Folha de S. Paulo


Como a cultura pop esvaziou o hino 'Hallelujah', de Leonard Cohen

"Hallelujah", a famosa balada de Leonard Cohen, se tornou tão inescapável que o compositor em dado momento tirou férias de sua canção. "Acho que é uma boa canção, mas pessoas demais a cantam", ele disse ao "The Guardian", em 2009, concordando com o crítico que havia pedido "uma moratória ao uso de 'Hallelujah' em filmes e programas de televisão".

Parece que os produtores da cerimônia do Emmy Awards, em setembro, não foram informados sobre a proibição extraoficial. Quando começou o segmento do programa que registra os profissionais de TV mortos durante o ano, a canção surgiu na voz de Tori Kelly, que se acompanhou ao violão e disparou o primeiro verso: "Well, I heard there was a secret chord".

A reação no Twitter não foi difícil de interpretar: "Mais um momento 'Hallelujah'?"

Pouca gente prestou atenção a "Hallelujah"quando a canção –parte hino, parte balada de amor– foi lançada no lado B de "Various Positions", álbum de 1984, mas nos anos seguintes ela atraiu a atenção de Bob Dylan (que a cantou ao vivo) e John Cale, um dos criadores do Velvet Underground, que gravou sua versão em "I'm Your Fan", um álbum de covers. Em 1994, Jeff Buckley incluiu uma versão passional da balada em seu disco "Grace", e a sua interpretação se tornou a versão mais imitada.

A canção desde então se tornou um standard contemporâneo, tocada em toda parte, de estações de metrô a sinagogas, onde a melodia é muitas vezes transposta para a letra de "Lecha Dodi", uma canção da liturgia do sabbath. Bono, Bon Jovi, Willie Nelson, Paramore e Celine Dion também a gravaram.

Mas "Hallelujah" é mais familiar por sua presença em filmes e programas de TV, onde foi usada como trilha sonora para dezenas de mortes e separações, e costuma ser cantada incontáveis vezes em reality shows de cantores. Porque telegrafa emoção –tanto pesar quanto esperança– e envolve certa medida de acrobacia vocal, ela se tornou escolha automática para o Grande Momento Emocional nas telas e costuma ser escolhida por cantores que desejam transmitir uma imagem de autenticidade.

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Abaixo, um breve histórico de como a cultura pop vem torturando a criação de Cohen ao longo dos anos:

Basquiat
A trilha sonora de "Basquiat - Traços de uma Vida" (1996) recorre com frequência ao pós-punk (Bush Tetras), rock (Rolling Stones) e jazz (Charlie Parker), mas o filme se encerra com a "Hallelujah" de Cale, um momento crucial tanto na ascensão da canção quanto na santificação póstuma do artista plástico.

"Shrek"
De acordo com "The Holy or the Broken", livro do crítico musical Alan Light sobre "Hallelujah", os diretores musicais de "Shrek" (2001) descobriram a cover de Cale ao ouvi-la na cinebiografia de Basquiat. A versão dele aparece no filme, mas no álbum da trilha sonora a canção foi registrada em uma nova cover por Rufus Wainwright.

"The West Wing"
O seriado político "The West Wing" é ocasionalmente descrito como presciente. Isso certamente poderia ser afirmado quanto ao seu uso de "Hallelujah", que popularizou a tendência de empregar a canção no encerramento dos episódios finais de cada temporada, com destaque para o episódio em que um personagem morre inesperadamente.

"The O. C."
O drama televisivo adolescente "The O. C.", do começo dos anos 2000, usou a versão de Buckley para "Hallelujah" duas vezes em sua primeira temporada: uma no segundo episódio, durante um momento íntimo entre os apaixonados protagonistas adolescentes de um amor impossível, Marissa e Ryan, e de novo no episódio de encerramento da temporada, antes que os personagens principais seguissem cada qual seu caminho. Duas temporadas mais tarde, a canção foi retomada, desta vez na interpretação de Imogen Heap, quando Ryan tira o corpo de Marissa de um carro em chamas.

"Watchmen - O Filme"
Os primeiros versos de "Hallelujah" se referem à história de Davi, no Livro de Samuel, mas a combinação de amor sexual e amor divino na quarta estrofe faz dela uma espécie de versão moderna do Cântico de Salomão. "Watchmen - O Filme" (2009), de Zac Snyder, traz esse erotismo à superfície, usando "Hallelujah" como trilha sonora de uma cena de sexo entre os personagens Night Owl e Silk Spectre II.

"O Senhor das Armas"
O filme com Nicholas Cage no papel de um traficante de armas semiarrependido inclui algumas escolhas criativas na trilha sonora, entre as quais "For What It's Worth", do Buffalo Springfield. A decisão de usar "Hallelujah" nos minutos finais do filme lançado em 2005 já era quase um clichê.

"E. R.", "Scrubs", "General Hospital" (duas vezes), "Trauma", "House"
"Hallelujah" encontrou espaço natural nas séries hospitalares do final dos anos 2000, e foi utilizada muitas vezes para conferir seriedade adicional à morte dramática de um paciente. Um episódio especialmente lacrimoso de "General Hospital" traz a equipe toda cantando "Hallelujah" no ônibus em uma viagem de esqui. A canção retorna depois que o ônibus bate, na estrada coberta de neve.

Hope for Haiti Now
Justin Timberlake deixou de fora os versos eróticos quanto cantou "Hallelujah" no show Hope for Haiti Now, que tinha por objetivo arrecadar dinheiro para os haitianos depois do terremoto de 2010.

12-12-12, um show em apoio às vítimas do furacão Sandy
Cohen rascunhou cerca de 80 estrofes quando estava compondo "Hallelujah". Adam Sandler desenvolveu mais algumas para um show de caridade em benefício das vítimas do furacão Sandy, no Madison Square Garden, citando acontecimentos como uma trombada do quarterback de futebol americano Mark Sanchez contra a bunda de um companheiro de time e o fechamento dos cinemas pornô de Times Square.

"American Idol" "The X Factor", "America'as Got Talent", "The Sing-Off"
"Hallelujah" pode ter sobrevivido aos dramas hospitalares e aos episódios finais de novelas, mas quase foi assassinado pelos reality shows, nos quais vocalistas inexperientes tentam repetidamente impressionar jurados enchendo a canção de floreios e melismas. Jason Castro apresentou a interpretação mais celebrada da canção em "American Idol", e Alexandra Burke venceu o "X Factor" britânico cantando uma versão ao modo Whitney Houston no final de uma temporada do programa. Anna Clendening mais tarde cantaria "Hallelujah" em "America's Got Talent", e a Street Corner Symphony tentou uma versão no torneio de grupos vocais "The Sing-Off".

"Dancing With the Stars"
A discreta e humilde canção de Leonard Cohen recebeu seu tratamento mais grandioso em 2010, quando Michael Bolton a cantou aos gritos, cercado por geradores de fumaça e um coral infantil, em um episódio de "Dancing With the Stars". Ele parecia estar subindo aos céus enquanto cantava. O apresentador Tom Bergeron descreveu a apresentação como "triunfante" –e usou o termo como se fosse elogio.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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