Folha de S. Paulo


'Rocky Horror Show' relembra filmes B e debate as fronteiras entre gêneros

"A única coisa de que eu não gosto neste espetáculo é tirar a maquiagem depois." Ao fim de um ensaio de "Rocky Horror Show" na última semana, Marcelo Medici, com resquícios do pretume de lápis no contorno dos olhos, descansa os pés do salto alto e o estômago do espartilho. "Não vai sair nunca", brinca o ator sobre o que ainda lhe resta de pintura no rosto.

Medici é quem dá corpo ao cientista maluco Frank N Furter, um alienígena travesti, na montagem dos diretores Charles Möeller e Claudio Botelho para o musical, que estreia nesta sexta (11) em São Paulo.

Homenagem satírica aos filmes B e de terror dos anos 1940 a 70, a peça do britânico Richard O'Brian estreou em 1973 numa pequena sala londrina e logo virou ícone da cultura pop (leia abaixo).

A história rocambolesca começa com um casal de noivos puritanos, Brad (Felipe De Carolis) e Janet (Bruna Guerin), cujo carro quebra na estrada numa noite chuvosa.

Procurando ajuda, eles vão parar num castelo abandonado, onde encontram Frank e uma série de figuras bizarras.

Logo são embalados pela filosofia de liberdade sexual do cientista maluco, que cria para si próprio –e seus desejos carnais– uma criatura, Rocky (Felipe Mafra), homem loiro de corpo escultural cujo visual mistura referências a deuses gregos e heróis de quadrinhos (veste apenas sunga e botas douradas).

"O espetáculo é quase um precursor da ideia da novela 'Dancing Days' (1978): 'Caia na gandaia, entre nessa festa'", comenta Möeller. "É como diz uma das músicas de 'Rocky Horror', que para mim é mote da peça, 'não sonhe, seja'."

"Frank é pura sexualidade, é movido a isso", continua Medici. "Tem uma coisa anárquica nesse personagem: ele é metade homem, metade mulher –quando as pessoas querem que os outros sejam uma coisa ou outra."

O exagero também está no visual: brilhos e paetês que remetem ao glam rock e ao glitter rock. O estilo do cientista maluco, por sinal, lembra muito o do músico David Bowie (1947-2016) e seu personagem Ziggy Stardust, também um alienígena que borra as fronteiras entre gêneros.

"O homem que veio do espaço não é condenado pela sociedade. Ele pode fazer sexo, transgredir na sexualidade", afirma Möeller, que assina os figurinos da montagem. "Coloco espartilho sem peito, a sunga com volume marcado. É uma androginia montada."

Frank não tem pudores e não hesita em burilar Brad e Janet. O casal careta que adentra no castelo sai transformado, "glitterizado", segundo o diretor. "É a noção de que a liberdade de gênero seria possível se todos se travestissem das mesmas armas."

DUBLADO

As referências aos filmes de baixo orçamento também estão nas falas. Se no original falava-se num tom forçado, os chamados "schlock dialogs", aqui os atores fazem os diálogos soar como se viessem de um filme dublado. "É um grande deboche, mas ao mesmo tempo tem uma sofisticação muito grande", complementa o encenador.

As letras fazem referências de época e aos filmes B, e a dupla buscou adaptar algumas ao público brasileiro. Fay Wray, a mocinha de "King Kong" (1933), aparece em várias. "Troquei algumas por 'loira' e outras variações. Mesmo porque o nome dela não é o mais fácil de se pronunciar em português", diz Botelho, responsável pela tradução.

Amante do rockabilly, O'Brian criou para a trilha uma mistura de rock dos anos 1950 e baladas. "Acho que é a coisa mais difícil em que já trabalhei", continua Botelho. "As músicas parecem simples, mas nada é cartesiano."

Medici, que nos últimos anos fez fama com personagens em peças como "Cada um com Seus Pobrema", não atuava em musicais desde "Sweet Charity" (2006). Diz ter tido um frio na barriga.

"Mas entendi que Frank não tem que cantar uma partitura perfeita ou ser o melhor bailarino. Tem que ser feito por um ator. É um personagem muito forte, te engole", segue Medici, enquanto estica as pernas cansadas do salto.

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ROCKY HORROR SHOW
QUANDO sex. e sáb., às 21h; dom., às 19h; até 11/12
ONDE Teatro Porto Seguro, al. Barão de Piracicaba, 740, tel. (11) 3226-7300
QUANTO R$ 50 a R$ 120; 14 anos

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Sessões tinham público fantasiado

"Rocky Horror Show" nasceu numa pequena sala no andar superior do Royal Court Theatre, em Londres, em 1973. Tinha seu autor, Richard O'Brian, no papel do mordomo corcunda Riff Raff e Tim Curry como o cientista maluco Frank N Furter.

Em 1975, estreou na Broadway e virou filme, este com quase todo o elenco original do musical londrino e direção de Jim Sharman. Foi um dos primeiros longas de Susan Sarandon, a quem coube interpretar a mocinha Janet.

Também foi o primeiro filme de Tim Curry, que classificava seu personagem como "pansexual" e criou para o cientista maluco um sotaque que misturava o da rainha Elizabeth 2ª e a voz estridente que a mãe do ator fazia ao falar com ele ao telefone.

Veja trailer do filme

Segundo o site de bilheterias Box Office Mojo, é o oitavo filme musical mais visto na história dos Estados Unidos. No país, era exibido em sessões da meia-noite, destinadas a filmes B e cult.

Tornou-se comum o público ir ao cinema vestido dos personagens e cantar as músicas durante a exibição, tradição que começou no Waverly Theater, em Nova York, hoje sede do cineteatro IFC Center. Os espectadores ainda levavam objetos como pistolas de água, para simular a chuva do início do filme.

Charles Möeller conta que assistiu ao longa pela primeira vez numa sessão assim, durante um festival de cinema em Santos (litoral paulista) em 1980, quando tinha 13 anos.

A produção ganhou diversas montagens. No Brasil, duas tiveram destaque: em 1975, Rubens Corrêa dirigiu Wolf Maya e Lucélia Santos numa versão; em 1994, outra foi dirigida por Jorge Fernando e tinha Claudia Ohana e Léo Jaime no elenco.

Em entrevistas, Richard O'Brian credita o sucesso do musical ao seu tom de "conto de fadas": Brad e Janet entram no castelo como João e Maria chegam à casa feita de doces. Ali encontram a bruxa (Frank), também uma alegoria da serpente do livro bíblico Gênesis, que seduz o casal virginal para o desejo.

"E o fato de uma espécie de Frankenstein usar um espartilho pode divertir o público", disse nos bastidores do filme, em 1974. O longa está disponível na Netflix.


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