Folha de S. Paulo


Novo romance de Ricardo Lísias aborda conceito de real na literatura

De vez em quando levando a mão ao rosto para esconder uma mancha preta nos dentes da frente, o homem nu desce gingando a rampa de acesso à favela do Pavão-Pavãozinho. Abre os braços e faz um avião; pula, dá três voltas, dança como se estivesse desfilando no Sambódromo. Na esquina da rua Francisco Sá com a avenida Nossa Senhora de Copacabana, uma multidão já o acompanha, celulares ligados.

Quando a performance termina, com o nudista molhando as canelas na água do mar, há mais de meio milhão de acessos aos vídeos no YouTube que registraram o trajeto do morro à praia. Gifs e hashtags explodem nas redes.

É apenas o início da saga de José de Arariboia, Arariba para os íntimos, 35 anos, que até então tivera uma vida reclusa de pintor relativamente bem-sucedido. A partir do "happening", surge a suspeita de que ele teria planejado tudo com antecedência, um bem bolado passo em sua carreira.

Ricardo Borges/Folhapress
Rio de Janeiro, BRASIL, 18 - 12 - 2014; Vista da laje da dona Azelina, que recebe uma festa de réveillon clássica em sua casa na favela do Pavao-Pavaozinho. Todo ano Turistas de todo o Brasil e de fora passam a virada do ano no local. ( Foto: Ricardo Borges/Folhapress)**EXCLUSIVO FOLHA**
Vista do Rio a partir de laje na favela Pavão-Pavãozinho

No recém-lançado "A Vista Particular", ao narrar o processo criativo de Arariba, Ricardo Lísias volta a discutir o conceito do real na literatura: "Às vezes eu fico pensando sobre a distância que estamos desse chamado 'real'. Será que já não precisamos avaliar o grau de afastamento que estamos da 'realidade'?"

No ano passado Lísias foi intimado pela Polícia Federal a esclarecer a falsificação e uso de documento público na ficção "Delegado Tobias" (publicada pela e-galáxia).

"Meus personagens foram investigados como se fossem 'falsificações'. Precisei contratar advogados, passei boas horas depondo. A Justiça usou seu trabalho, tempo e energia para investigar uma obra de ficção. O que não é isso senão uma absoluta distância não só do real, mas até mesmo do razoável?"

Ele considera que a experiência com o romance "Divórcio" (2013) - em que o suposto diário de sua ex-mulher é parte da trama - ficou no passado: "O conceito de autoficção nem me interessa muito. Continuo minhas pesquisas do mesmo jeito que fazia antes, mas alterando cenários, linguagens e percepções. Quero mudar sempre e sempre fazer experimentos diferentes".

No livro novo, o cenário é olímpico-carioca. "Já retratei São Paulo. Achei que era a vez do Rio de Janeiro. A cidade vive uma ficção, fiquei chocado com seu real estado de abandono. E, como o texto está justamente tentando discutir essas questões, o Rio caiu como luva. Sem falar que ainda preserva seus mitos: cidade maravilhosa, vistas lindas, povo festeiro, todo mundo bonito".

Na chamada vida real, o Pavão-Pavãozinho foi palco de uma recente guerra entre traficantes e a PM que apavorou moradores de Copacabana, Ipanema e Lagoa. Um homem despencou de uma pedra, e a imagem, filmada da janela de um dos apartamentos próximos, correu o mundo.

"É uma imagem dura, terrível e sintomática. Lembrei-me da cena do livro em que as pessoas sobem a uma laje para ver o Rio. Bem que podia ter sido de lá que o traficante caiu", diz Lísias, que estava nos Estados Unidos dando um curso e recebeu mensagens, de amigos que já haviam lido o romance, comentando a coincidência.

Na ficção, Zé Arariba liga-se a Biribó, chefe do tráfico que domina as novas tecnologias e quer se transformar em videomaker. Os dois armam no habitat do morro a exposição "Comunidade Brava: Turismo Brasil". Títulos de algumas das obras da coleção pública: "Viveiro de Aedes aegyptti: lavas de mosquito"; "Mãe se matou depois que a polícia assassinou seu filho (moravam aqui)"; "Hoje em dia tem até TV de plasma na favela".

O sucesso leva a mostra ao Museu do Amanhã (com trágicas consequências), depois ao Instituto Inhotim, em Minas Gerais, e finalmente à consagração na Bienal de Veneza. Uma galeria de personagens reais comenta a obra em curso de Arariba: Georges Didi-Huberman, Maria Rita Khel, Vladimir Safatle, Paulo Herkenhoff, Luiz Felipe Pondé, Silas Martí e até Merval Pereira.

O livro é uma sátira. Mas é montado como um processo; a descrição do projeto do artista é a própria construção do relato. E abre espaço para o narrador onisciente que não se priva de observações em primeira pessoa que relativiza o que é contado:

"Na questão de aproximação e afastamento (da realidade, das pessoas de 'carne e osso', da forma romanesca, da ficção, da cidade de mentira, do narrador), era importante deixar bem claro o aspecto de construção estética da obra. Eu tinha de me afastar da minha arquitetura".

A Vista Particular
Ricardo Lísias
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Leitor de César Aira, Mario Bellatin, Nuno Ramos, Sérgio Sant'Anna - autores que estabelecem uma relação entre literatura e artes plásticas -, Lísias quer aprofundar a questão.

"Tenho muita desconfiança das possibilidades de expressão da literatura por si mesma. Talvez por isso tenha começado a recorrer a outros gêneros. Fiz uma peça de teatro e tentei nas últimas obras algum diálogo com as artes plásticas. Inclusive fiz um projeto de 'instalação literária', em que as pessoas terão que ler o que está no interior dela."

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A VISTA PARTICULAR
AUTOR Ricardo Lísias
EDITORA Alfaguara
QUANTO R$ 34,90 (128 págs.)


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