Folha de S. Paulo


Análise

João Antônio viveu roda-viva de prestígio e amargura

Alguns escritores melhoram com o tempo, amadurecem, produzem obras-primas de maturidade. Outros vivem em permanente crise e experimentação. João Antônio era deste último time.

Com "Malagueta, Perus e Bacanaço" (1963), teve um começo promissor e de reconhecimento crítico. A publicação pela Civilização Brasileira fez dele um porta-voz dos excluídos e dos malandros.

Seus protagonistas eram jovens de periferia talentosos e inquietos, mais ou menos inseridos em uma sociedade dita "de bem", que prometia sucesso e ascensão, mas entregava violência e desdém.

Foi comparado a Manuel Antônio de Almeida, Alcântara Machado, Mário de Andrade e Guimarães Rosa, mas seus autores de predileção eram Graciliano Ramos e Lima Barreto.

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O escritor João Antônio trabalha no Jeca Bar, nos anos 1960
O escritor João Antônio trabalha no Jeca Bar, nos anos 1960

A este último dedicou a maioria de seus livros e em homenagem a ele escreveu "Calvário e Porres do Pingente Afonso Henriques de Lima Barreto", biografia romanceada feita a partir de uma experiência radical, a internação voluntária em um sanatório depois de uma crise nervosa.

Experimentou uma fase de sucesso popular, com "Leão-de-Chácara" (1975) e a reedição do primeiro livro.

Na mesma época, publicou bons volumes de jornalismo literário e manteve intensa atividade na grande imprensa ("Jornal do Brasil") e na imprensa alternativa ("Pasquim", "Realidade", "Movimento").

Nos anos 1980, o interesse por sua obra diminuiu. No belo e amargurado "Abraçado ao Meu Rancor" (1986), deixou a grande marca das contradições de sua literatura: a mistura de autobiografia e ficção, o conflito entre a origem modesta e o sucesso meteórico, a divisão pessoal entre São Paulo e Rio de Janeiro.

No ótimo e pouco lido livro de perfis "Dama do Encantado" (1996), publicado no ano de sua morte, acrescentou ao seu panteão pessoal Dalton Trevisan, Garrincha e Araci de Almeida, além de outros músicos, em especial Noel Rosa, a quem também dedicou um ensaio.

O final da vida foi melancólico. Republicava textos antigos e não contava com a mesma projeção.

O espírito irreverente, entretanto, não o abandonou, como mostram suas últimas cartas, trocadas com o jornalista Mylton Severiano e o editor Fernando Paixão. Foi encontrado morto em seu apartamento em Copacabana, em 31 de outubro de 1996.

Vinte anos depois, João Antônio ainda é um autor em ebulição. A Editora 34 assumirá a publicação de sua obra –os livros vinham sendo reeditados pela Cosac Naify.

A nova casa também promete a publicação de inéditos e o relançamento da obra sobre Lima Barreto.

Outro livro que mereceria reedição é "Lambões de Caçarola (Trabalhadores do Brasil!)", de 1977, mistura de autobiografia de infância com ensaio sobre Getúlio Vargas. Falta publicar uma biografia –o estudo biográfico feito por Rodrigo Lacerda permanece inédito–, assim como uma edição das cartas do autor.

LEGADO

Deixou poucos herdeiros literários: algo de sua literatura pode ser sentida em Ferréz, Fernando Bonassi, Marçal Aquino, Luiz Ruffato e João Paulo Cuenca, autores que escolheram tratar, na ficção e na crônica, dos impasses violentos da vida cotidiana nas duas maiores cidades brasileiras.

Grandes críticos brasileiros, como Antonio Candido, Alfredo Bosi, João Luiz Lafetá e José Paulo Paes, debruçaram-se sobre seus textos.

Em anos recentes, uma nova geração vem ampliando o alcance desses estudos: Clara Ávila Ornellas, Telma Maciel, Julio Bastoni, Luciana Correa, Carlos Alberto Azevedo Filho, Hugo Belluco, Gilberto Figueiredo Martins, Wagner Coriolano, entre outros.

Que as novas aproximações críticas possam recolocar o escritor também em novo patamar editorial e de recepção, evitando os estereótipos que ainda recaem sobre uma obra tão complexa e atual.


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