Folha de S. Paulo


Crítica

Em autobiografia, Rita Lee mostra que fez e fará muita gente feliz

Como numa "caça ao tesouro", as primeiras 30, 40 páginas de "Rita Lee, uma Autobiografia" oferecem pistas da infância e adolescência da deusa maior do nosso pop-rock que se encaixam perfeitamente em letras de sucessos futuros dessa carreira única no panorama musical brasileiro.

Lá estão, por exemplo, os "dropes de anis" de "Flagra"; a "boca de cereja e os dentes de marfim" da "Miss Brasil 2000", que eram o ideal de beleza das estrelas da TV que o pai de Rita um dia trouxe para a casa da então pacata Vila Mariana, em São Paulo. Até o esboço de seu maior hit, "Lança Perfume" aparece nas lembranças de Carnavais regados a Rodouro...

Raros, porém, são elementos desse passado que justificam o refrão de uma de suas obras-primas: "Ovelha Negra". Até os 14, 15 anos (Rita assume ser péssima com datas) era uma menina sapeca –mas não "desajustada".

O episódio em que foi molestada na infância –com uma chave de fenda, por um técnico que sua mãe havia chamado para consertar a máquina de costura– é narrado de maneira tão objetiva que dificilmente você faz a ligação desse trauma com uma futura rebeldia.

Até porque amor não falta na vida de Rita, cortesia de Roberto de Carvalho, o "Rob", seu grande parceiro (musical, romântico, espiritual), que ela só chama de namorado.

Mas um dia a música aparece na sua vida –e tudo muda. De dentro daquela "loirinha de franjinha" sai um furacão criativo que durante décadas fez o Brasil cantar (e dançar!). E as coisas começam a ficar interessantes.

Três anos atrás, procurei Rita para um, digamos, "projeto biográfico". Já havia nela uma vontade de revisar as aventuras e desventuras de uma carreira extraordinária.

Naquele esboço de colaboração, senti sua preocupação em deixar a versão "correta" dos fatos. Desconfiada de "biógrafos", preferia ela mesma contar sua história –e aqui está. Honesta? Tudo leva a crer que sim, até porque ela não poupa nem a si mesma.

As "bad trips" de álcool e barbitúricos estão lá –bem como sua purificação graças à adorada neta. Sua amargura com "ozmano" –como dúbia e carinhosamente ela trata os irmãos Sérgio Dias e Arnaldo Baptista, parceiros nos Mutantes– também.

E ainda seu ódio a Ezequiel Neves –o "Rasputin" de Cazuza, segundo ela–, bem como a indignação com a imprensa que a criticou –especialmente por trabalhos do final dos anos 1980 (alguns dos quais até ela se arrepende).

Aos 68 anos, Rita é mais cuidadosa ao relatar polêmicas recentes, como sua cruzada contra os maus-tratos a animais e o incidente, em 2012, no Festival de Verão de Sergipe; sua versão aparece em trechos rabiscados.

(Rita está proibida de falar sobre o episódio que a colocou contra autoridades num comentário sobre drogas).

Mas, de resto, a autobiografia é um surpreendente (e delicioso) registro de uma das cabeças mais inteligentes e provocadoras que já agraciaram nosso pop –duas qualidades que parecem hoje esquecidas pelas rádios.

Em episódios como sua excomunhão da Igreja Católica por subir ao palco vestida de Nossa Senhora, Rita ri dali –e o povo chora daqui com farsas como a sua prisão nos anos 1970 (que terminou com intervenção de Elis Regina). Mas o mais importante é o que show não para.

Rita Lee
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Gostaria de ter lido mais detalhes das loucuras, entender melhor sua criação, ficar mais perto ainda de Rita. Mas aí me lembro dela me cochichando numa antiga entrevista: "Zequinha, com tudo que eu tomei, é um milagre eu lembrar de alguma coisa...". E me dou por satisfeito com o livro.

Só corrigiria talvez sua frase final, que ela adapta de "Saúde": "Acho que fiz um monte de gente feliz". No passado não, Rita –você ainda vai fazer muita gente feliz por muito tempo.

RITA LEE, UMA AUTOBIOGRAFIA
AUTORA Rita Lee
EDITORA Globo Livros
QUANTO: R$ 44,90 (352 págs.)


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