Folha de S. Paulo


Em filme na Bienal de SP, Rosa Barba investiga as memórias do Minhocão

Quando primeiro pôs os pés em São Paulo, Rosa Barba já tinha certa fixação pela arquitetura da cidade, em especial as curvas futuristas dos prédios de Oscar Niemeyer. O edifício Copan, aliás, foi o ponto de partida das andanças dessa artista italiana pelo centro.

Mas outra estrutura serpenteando pelo coração da metrópole ali perto chamou mais a atenção. Interessada na brutalidade, ou no avesso da beleza da obra do modernista, Barba decidiu filmar o Minhocão, uma "arquitetura radical, implantada à força".

Um dos trabalhos mais fortes da atual Bienal de São Paulo, o estranho documentário da artista tenta dissecar as raízes históricas da construção do elevado que rasga o centro paulistano de leste a oeste e revelar como a obra mudou a vida dos moradores ao redor. Também busca estabelecer uma ponte entre a ditadura, época da construção da estrutura inaugurada em 1971, e os abalos políticos do presente.

Divulgação
Cena do filme 'Disseminar e Reter', da artista italiana Rosa Barba, agora na Bienal de São Paulo
Cena do filme 'Disseminar e Reter', da artista italiana Rosa Barba, agora na Bienal de São Paulo

Sua lente, por exemplo, não deixa de mostrar as palavras "Temer jamais" grafitadas num guarda-corpo do viaduto. Esse é um dado importante, mas é mais um detalhe. Barba, que vem se firmando como um dos nomes mais relevantes no cenário artístico global, não faz de seu trabalho um manifesto político partidário. Seu registro, e talvez venha daí sua potência, é mais ambíguo.

Ela põe no centro da ação as rampas de concreto mais odiadas da cidade, vistas ao mesmo tempo como espécie de materialização de uma era sombria imposta ao tecido urbano, uma herança física do regime militar, mas também como um lugar cheio de vida.

"Sei que essa não é uma estrutura amigável para quem mora ao lado dela", diz a artista. "Mas enquanto arquitetura é interessante pelas camadas e perspectivas que você tem a partir dali. Entendo isso como uma passarela de onde é possível ver prédios incríveis à esquerda e à direita."

Mas, se a visão das laterais pode ser deslumbrante, além de transformar carros e atletas de fim de semana em voyeurs das vidas às margens do viaduto, o horizonte à frente é limitado, uma fresta de céu afogada pela fumaça dos escapamentos e espremida entre construções sem fim.

Barba sublinha essa camisa de força arquitetônica com relatos atuais e de época. No filme, moradores contam suas lembranças da construção do elevado e falam sobre como é viver ao lado dele.

Intercaladas a essas memórias, frases do artista Cildo Meireles sobre arte em tempos de censura, reflexões que deram forma às mensagens contra a ditadura que circulou em cédulas de dinheiro e garrafas de Coca-Cola, servem de legenda às cenas do filme.

Também aparecem ali registros históricos da construção do elevado, que Barba brigou para conseguir da Cinemateca às voltas com demissões recentes, e imagens de arquivos da Bienal sobre o boicote sofrido pela mostra nos anos 1960 e 1970 -Meireles, aliás, foi um dos articuladores da fuga de artistas que protestavam contra a censura dos generais.

"Muita coisa mudou e ao mesmo tempo nada mudou desde então", diz Meireles. "Naquela época, você tinha pelo menos ilusões de ter um horizonte político. E hoje em dia a tragédia brasileira é não ter nenhuma perspectiva."

Barba ilustra esses passos em falso da história também no formato físico da obra. Rodadas em película de 16 milímetros, as cenas duram o tempo de cada rolo de filme -as ações dos moradores convocados pela artista, que chegam a cantar e dançar no Minhocão, precisam acontecer seguindo essa métrica rígida.

"Dependo desse aspecto material de curto prazo", diz a artista. "Acredito mesmo nesse esquema de filmar, parar e filmar, e as pessoas que participam do filme acabam entrando nesse ritmo comigo."

Suas obras, aliás, não estão só na tela. Muitas vezes, elas estão presentes como negativos entrando no projetor, que também faz parte da peça, uma espécie de cinema expandido que ocupa toda a sala. "Os rolos se tornam uma presença escultural no ambiente", diz Barba. "Meus trabalhos também são esculturas."

UTOPIA ENCASTELADA
Na última Bienal de Veneza, um filme da artista com imagens aéreas de galpões que armazenam material radioativo, por exemplo, também parecia menos uma denúncia do perigo e do volume dessas construções espalhadas por zonas desérticas e mais um trabalho minimalista. Na sala, os rolos do filme deslizam inocentes, expostos nos projetores, diante da imagem que carregam, uma paisagem de estruturas retangulares que lembram abstrações geométricas.

Não espanta, aliás, que em São Paulo seu filme seja mostrado ao lado das rampas sinuosas desenhadas por Niemeyer no prédio mais vistoso do Ibirapuera. Do canto da sala, é possível ver ao mesmo tempo o asfalto encardido do Minhocão e as curvas monumentais do modernista -uma contraposição da realidade atual à utopia de tempos idos que só sobreviveu encastelada no parque.

Não muito longe dali, outra obra da artista também abala a geometria precisa do pavilhão. Um enorme projetor equilibrado sobre um andaime lança sobre a rampa de acesso ao primeiro andar um fotograma todo branco, um grande retângulo de luz que ilumina os passos do público.

"Queria mergulhar as pessoas noutro espaço. Mesmo sem saber, elas caminham dentro de um quadro de celuloide", diz Barba. "E esse filme também vai desaparecendo, já que a película vai riscando a cada projeção, uma observação sobre o tempo. Em São Paulo, é uma celebração de como as pessoas contornam sistemas complexos."

32ª BIENAL DE SÃO PAULO
QUANDO ter., qua., sex. e dom., das 9h às 19h; qui. e sáb., das 9h às 22h; até 11/12
ONDE pavilhão da Bienal, pq. Ibirapuera, portão 3, 32bienal.org.br
QUANTO grátis


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