Folha de S. Paulo


Guilherme Arantes diz que carreira 'é muito mais fracasso que sucesso'

O paulistano Guilherme Arantes, 63, deixou sua casa e seu estúdio na Bahia para retornar a sua cidade para divulgar o lançamento da caixa com seu nome. Ela reúne os 21 álbuns de sua carreira, mais um disco que reúne canções "perdidas" em compactos e trilhas de novela.

Sucesso nacional no álbum de estreia, com "Meu Mundo e Nada Mais" estourando na trilha da novela "Anjo Mau", em 1976, o cantor tem trajetória de altos e baixos. A caixa traz um livrinho de 72 páginas em que ele conta a história de cada álbum, que funciona como autobiografia.

A caixa "Guilherme Arantes" custa cerca de R$ 480. No próximo dia 12, o cantor faz show em São Paulo. A seguir, trechos da entrevista.

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Folha - Você mora na Bahia há alguns anos. Hoje, em São Paulo, está hospedado em um hotel perto da esquina famosa da rua Ipiranga com a avenida São João. Por que escolheu se hospedar aqui?
Guilherme Arantes - Lembrança do tempo em que eu entrei na FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da USP) e frequentava o centro. A gente ia comer no Salada Paulista, na República, onde hoje tem um McDonald's. A gente vinha ao Almanara, ao Largo do Arouche, esses lugares são referência para mim. Eu comecei a vir para cá [hotel Marabá] por força do Bar Brahma, que fica na esquina. Comecei a fazer shows ali e fiquei pela primeira vez nesse hotel. Não tinha significado para mim, era o nome do cinema. Mas passei a ver a vida própria que tem nessa região, tem muitas opções de comida, o Bar da Dona Onça. É muito mais engraçada do que Jardins ou Morumbi. Aqui tem vida, tem a Galeria do Rock, tem milhões de coisas acontecendo. E acabou dando o clima do "Condição Humana", o disco que eu lancei em 2013, que foi mesmo um resgate do centro de São Paulo, do tempo dos meus 17, 18 anos. "Condição Humana" trouxe muito daquela energia dos anos 1970, montamos uma banda com músicos da época, como o Luis Sergio Carlini, uma banda naqueles moldes e fizemos um disco daquele jeito. E deu supercerto.

Box - Guilherme Arantes - De 1976 A 2016 (CD)
Guilherme Arantes
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Por que lançar o box?
Eu quero estar livre, é também uma libertação do peso desses 40 anos desde que comecei. Nesse tempo todo eu fiz o que era para fazer desde menino. Na minha infância, eu era o cantor da família. "Vamos fazer silêncio que o Guilherme vai tocar para nós!" Na casa da minha tia Jandira, que era diretora do Butantã, ela reunia todo mundo na casa dela e lá tinha um piano de cauda. Ninguém mais tocava, só eu. E tocava de tudo. Elvis Presley, Brenda Lee, Ray Charles, o início do Jorge Ben, o começo da Jovem Guarda, Hoje eu sou exatamente o que eu fui projetado a ser, no inconsciente da família e do meu pai, muito por força do meu pai, que ele queria que eu fosse músico popular, que eu fosse concertista. Era o que o meu pai fazia, ele tocava em casa Dilermando Reis, Garoto. Quando a Bossa Nova surgiu, depois a Jovem Guarda, meu pai era um entusiasta daquela efervescência, os festivais, a gente estava sempre acompanhando de perto. Eu tenho um primo, Solano Ribeiro, que foi produtor dos festivais. Meu tio trabalhava na Record, meus primos todos tocavam música, Baden Powell, todo mundo muito musical.

Todos paulistanos?
A raiz é do Ceará, do Crato, da família Limaverde, tem um conservatório lá. Então eu sou hoje o que era para ser a vida toda. O prazer que eu tenho com a música popular vem do colégio, eu fiz o Vocacional, do Brooklyn, famoso. Quando teve a revolução em 1964 os professores foram todos presos. Eu tocava lá, tinha educação musical, artes plásticas. Essa coisa da arte foi um apelo a vida toda. Quando eu entrei na FAU, eu também era o músico da classe, claro que tinha outros, gente de outras artes, o ator Thales Pan Chacon era nosso colega de turma. Hoje, 40 anos depois, olhei minha história e pensei que precisava amarrá-la, porque é uma história de picos e vales, mais baixos do que altos, a carreira é muito mais fracasso do que sucessos, os sucessos são pontas de iceberg. Então me interessava mostrar o resto dos icebergs.

Foi difícil reunir os 21 discos?
Sim, Tem gravadora que já não existe mais. A PlayArte, por exemplo. Foi um selo criado pelo grupo exibidos de cinema e fiz um disco lá que ficou perdido. Teve um outro disco que nem saiu em CD, o "Ronda Noturna", que tinha "Amanhã", "Baile de Máscaras", foi meu segundo disco. Consegui juntar tudo, muitas faixas desgarradas, que eram compactos de sucesso, "Planeta Água", "Deixa Chover", "Fio da Navalha". Mas não contaram como repercussão de vendas, porque os singles eram como um teste da gravadora. Eu queria pegar todas essas fases e contar as histórias, como era na gravadora Som Livre, qual era o ambiente na CBS. Fui ver qual era a dificuldade que tive nessas épocas, e vi que a dificuldade era o repertório, defender esse bastião autoral. Para um artista se transformar num cover é fácil. O artista vai envelhecendo e depois vira aquela coisa de cantar standards, de terno e gravata.

Sempre quis ser compositor?
Eu era radical na coisa do compositor. Quando era criança, meu pai sempre falava, "o craque mesmo é o compositor. Os astros aparecem, são vidas acidentadas, sempre com escândalos, mas o que fica é o compositor. Olha que beleza o Tom Jobim, o Baden Powell".

Eu queria pertencer a essa área nobre dos que fazem a canção, mas eu não tinha gente que acreditasse em mim. A única pessoa que acreditou foi a Elis Regina, a primeira que rompeu uma barreira de preconceito, porque eu era artista de programa de auditório. Eu achava bárbaro ser cantor de auditório, porque era democrático, você estava entrando nas favelas, nos rincões do Brasil, nos cabeleireiros tinha o pôster da revista "Amiga", da "Contigo". Então você tinha uma coisa afetiva, da mulherada apaixonada por você. Eu achava lindo o Roberto Carlos, porque ele pegava todo mundo. O Chico Buarque foi muito galã. Hoje se valoriza muito o lado intelectual do Chico, mas ele era um menino de olhos verdes, sonho das meninas. Eu queria ser o Chico.

Era fã desses caras?
Eu via isso dos auditórios, eu ia nos programas, "Esta Noite Se Improvisa", "Dois na Bossa", da Elis. Aí anunciava "vamos receber agora Chico Buarque" e entrava o cara que eu queria ser. Outro dia eu encontrei com o Ivan Lins, em Canela (RS), ele me entregou um prêmio que fui receber lá. Eu disse para ele: "Olha que volta que a vida dá. Eu queria ser você". Quando o Ivan Lins surgiu, com "O Amor É o Meu País", eu queria ser ele, queria ser o Taiguara, esses caras. Então, com a Elis eu realizei um grande sonho, porque ela me vendeu como um hitmaker, ela que inventou essa história de me chamar de hitmaker. Foi coisa dela, porque a Elis precisava de uma música para o rádio. Na época, na FM só tocavam os nordestinos, Elba Ramalho, Fagner, Zé Ramalho, Amelinha, Geraldo Azevedo. A Elis não tocava, a Bethânia não tocava. O primeiro sucesso da Elis em FM foi o "Alô Alô Marciano", e logo depois ela lançou a minha "Aprendendo a Jogar". Ela vendeu disco, ficou feliz.

Depois a Bethânia gravou "Brincar de Viver", uma das primeiras em FM que ela emplacou. Aí virei um compositor de atender grandes nomes. Fiz para o MPB4 "Labirinto", que foi um grande sucesso. São coisas que hoje ficam escondidas. No documentário que estou gravando e lançando em partes no YouTube, eu canto as músicas e conto como foi fazer aquilo. É importante lembrar que uma música minha botou o MPB4 na FM.

Os cantores passaram a procurar por você?
Em alguns anos eu fui a bola da vez. Você tem "o ano Zeca Baleiro", o "ano Chico César", o "ano Carlinhos Brown", o "ano Arnaldo Antunes", e teve ano do Guilherme Arantes. Mas você fica com essa aura de Midas e isso é duvidoso, é um perigo, achar que o cara põe a mão e é sucesso. Não é assim. Queria mostrar que não tem nada disso, o que tem é uma grande batalha, você procurando as gravadoras.

Eu conto no libreto da caixa que essa coisa de procurar as gravadoras é o que me cansou. "Você parou de cantar?" Não, eu parei de procurar o mainstream, porque já estavam cobrando essa coisa dos covers, de projetos, tipo "Guilherme Arantes Canta Tom Jobim", tudo nas cartas marcadas. Eu poderia fazer um "Guilherme Arantes Canta Elton John", quiserem que eu fizesse, mas é o óbvio do óbvio. Eu faria talvez algo com a música do Taiguara, porque o Taiguara é muito mais importante para mim do que o Elton John. Foi uma paixão fulminante, fez obras-primas que eu escuto até hoje, mas a carreira dele não teve uma amarração, não teve tempo de recolher uma vida cheia de elementos, de opiniões, que seriam valiosas hoje.

Isso acontece com muitos, não?
Tanta gente que se vê aí, o Johnny Alf, que foi fundamental para mim, o Tamba Trio do Luizinho Eça, os caras que estão entranhados na minha alma. Aí você olha os Beatles, Rolling Stones, Bowie, Dylan, e vê como a coisa é diferente lá fora. Isso veio muito de um livro que ganhei de uma fã, uma japonesa que segue todos os meus shows. Ela me deu um livro que traz as letras dos Beatles comentadas. É fantástico. E as imagens? O John Lennon  escrevendo "All You Need Is Love", o Paul McCartney escrevendo "Yesterday". A foto da rainha da Inglaterra diante da letra de "Yesterday" no British Museum, olhando uma obra que levou a cultura britânica às alturas.

A gente não vê isso no Brasil, o que se vê é um abandono. Claro que Chico, Milton, Tom Jobim, Vinicius, essa gente tem um nível de embaixadores diplomáticos do Brasil, é algo diferenciado. Eles têm amigos cineastas, escritores, um monte de gente que ajuda a cuidar de suas lendas, mas todos nós temos uma lenda, que pode não ser tão grandiosa, mas que é importante circunscrever no tempo que a gente viveu.

O que sentiu ao se debruçar sobre toda a sua produção?
Até para mim foi legal olhar minha carreira no panorama e me deter nos detalhes, para que as pessoas saibam como a obra foi feita. O que a gente comeu naquele dia? Como era o estúdio? Quem estava ali? Quem era Robson Jorge? E Lincoln Olivetti? São caras que foram importantes na minha vida. Relatar o entusiasmo com o qual fui recebido.
Teve um cara que me descobriu, que foi o Pete Dunaway, conto a história dele. Ele era cantor do Memphis, banda famosa de baile na qual eu queria tocar, mas eu não tinha um órgão Hammond. Fiz teste nas bandas, na banda do Marcos Maynard, chamada Lee Jackson. Quando, anos depois, reencontrei o Maynard como executivo de gravadora, ele se lembrou daquele menino de 12 anos que era um assombro, porque eu tocava Procol Harum, não só o hit "A Whiter Shade of Pale", tocava tudo perfeito.

Acho que os hits ficaram áridos, foram canibalizados pelas gravadoras que, acho, se arrependem de não ter colecionado mais esses materiais. Eu lembro que, quando morreu o Freddie Mercury, estava com um executivo da EMI, em Londres, e ele comentou: "Esse cara morreu na hora certa, a companhia estava quebrada e a morte dele foi providencial". A indústria aqui no Brasil não soube fazer esse trabalho "collector", de preservar fotos, entrevistas, releases.

Mexer nas gravações foi muito trabalhoso?
Foi um parto para a gente conseguir as matrizes, o material para remasterizar direitinho. Muita coisa a gente fez a partir do CD. "Ronda Noturna", nunca lançado em CD, a gente fez a partir do master de fábrica, eles foram descobrir onde estava e nos forneceram. Fomos atrás do som da época, acho que a pessoa não quer comprar uma versão mexida, quer o som que se ouvia. Quando ouço Beatles, não dou a mínima para remasterização. Quero ouvir o som antigo de "Michelle". Foi assim que fizemos essa caixa.

É a hora certa desse lançamento?
Eu fiz agora porque tenho gás. Daqui a 15 ou 20 anos, posso não ter saco para isso. Tenho medo de ficar um velho que só gosta de música barroca, de Scarlatti. Sou meio um barroco que caiu em Woodstock. O que eu gosto é isso, Scarlatti, Bach, Hendell. Sou barroco. Vira e mexe isso aparece nas músicas e é uma parte nobre da minha personalidade. Tenho medo de ficar chato, então veio o desejo de amarrar essas coisas para as pessoas, não quis esperar os 50 anos. Poxa, em 2016 eu posso estar morando nos Pirineus. Eu queria pirar, é importante. Você vê carreiras que são louquíssimas. O Neil Young, por exemplo, quando eu fiz "Condição Humana" me lembrava dele. Você tem que ficar velho, velho mesmo, a molecada vai querer você. Essa é uma juventude imorredoura, não uma juventude descartável, é algo que mantém o flame do cara acesso. Eu estou determinado que isso aconteça comigo. É pelo prazer, a gente não trabalha pelo dinheiro, pela fama. No começo de carreira eu fiz isso, tinha que aparecer, cavar um lugar ao sol, mas depois de um certo tempo você passa a pensar no conteúdo, no que você foi capaz de significar para vidas humanas, às vezes numa favela, numa periferia.

A crítica tratava você bem?
Eu fui um cara muito menosprezado ao longo da carreira, em parte pelo pessoal mais culto por eu ser muito popular, fazer programa de auditório no meio do Gilliard, do Sidney Magal. Mas para a gravadora, que queria algo popular, eu era meio aristocrático. "Ah, esse cara não é para vender muito, prensa só 20 mil". E prensavam 500 mil do Fábio Jr. Então meus discos entravam em falta cronicamente nas lojas. Agora a gente chega com um desagravo, finalmente quem quiser pode ter os discos do Guilherme que ainda não tinha.

Eu queria ser popular, mas fazendo uma coisa legal. Meu exemplo era o Chico Buarque, que conseguia que "Construção" tocasse na favela. "Carolina" é uma música que pegou todo mundo. Veja os Beatles, uma popularidade incrível e aí você vai ver o material e ali tem uma qualidade absurda. Nós hoje vivemos um momento difícil no Brasil. Ficou difícil de fazer esse crossover, a sociedade está toda estratificada em camadas que não dialogam mais. Tem os artistas da elite que falam com aquela tribo, o pessoal do funk só falando com sua turma. O país está muito estilhaçado. Fica mais difícil fazer o que a gente conseguiu, digo eu, Lulu Santos, Marina e tantos outros. Tivemos uma mídia mais generosa. O Chacrinha, por exemplo, a cada semana trazia uns 30 artistas. Poderia ser Agepê, Peninha, Gilliard, Magal, Biafra, mas também tinha espaço para Legião, Paralamas. O Chacrinha foi fundamental para o pop, era uma grande salada. A gente sente falta, o espaço na mídia foi diminuindo.

Por que diminui o espaço para música na TV?
A instalação da TV no Brasil sucedeu o fenômeno do rádio. Ela não tinha elementos próprios para colocar no ar, então se vale do que já estava formatado no rádio, como as novelas e as atrações musicais. Esse é segredo da música na TV nos anos 1960, na Record, com os festivais e tal, porque a música já era uma expressão mais avançada do que o jornalismo ou as transmissões esportivas. Hoje a música é só mais item no cardápio.

Existem os reality shows, uma versão de butique dos programas de calouros.
Os reality shows de música seguem uma valorização da voz que vem da cultura anglo-americana. O Brasil tem uma cultura mais minimal, mais sussurrante, coisa mais ligeira e criativa nas canções. "The Voice" é um fenômeno alienígena para o Brasil. O que se vê ali é uma profusão de gente cantando Beyonce, Mariah Carey, aquela coisa circo. São vozes circenses, emuladoras. Ali não a legitimidade de surgir uma Maria Gadú, uma Céu, uma cantora com mais personalidade. Ali não há espaço para a criação, só para a imitação. Esse é o espaço que tem na TV.

E a MPB, como vai?
Hoje temos gêneros utilitários. Utilitarismo é uma palavra boa para classificar o mal que varreu a música brasileira. O pop mundial está no apogeu, até o Justin Bieber é ótimo, as canções são muito boas. Virou exemplo de uma carreira bem cuidada. A Selena Gomez, essas meninas que eram estrelas teen da Disney, deram supercerto, com ginásios lotados de seguidores de uma música pop bem construída, de boas harmonias. John Legend é bárbaro, Bruno Mars é demais, Justin Timberlake é bom para caralho, aquele Sam Smith é um monstro, Adele é uma "monstra", Rihanna é genial. Sei que é entretenimento, mas é coisa bem feita, de performing arts, de arranjos criativos. Mesmo na eletrônica se acham os timbres bizarros. Aqui não. São sempre os mesmo quatro acordes e a mesma conversa, "a geladeira tá cheia", "hoje eu tô que tô", "eu vou comer todas", "vou beber tudo". É muito careta, até a droga ficou humilhada pela caretice. Pode botar maconha e cocaína ali que não acontece nada. Eu, que sou da geração Woodstock, acho que o mundo castigou aqueles que são "burning flames". O entretenimento ficou obrigatório para os Stones, Iron Maiden, AC/DC, esses figurões. O público vai para um rito coletivo, para ouvir o que conhecem. Ninguém está se lixando pela música nova do Mick Jagger.

GUILHERME ARANTES
QUANDO sábado (12/11), às 22h
ONDE Tom Brasil, r. Bragança Paulista, 1.281, tel. (11) 4003-1212
QUANTO de R$ 100 a R$ 200
CLASSIFICAÇÃO 14 anos


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