Folha de S. Paulo


Análise

Belchior, que completa 70 anos, fez de canções uma 'arte da fuga'

Em agosto de 2009, a notícia na grande mídia do "desaparecimento" de Belchior pegou muita gente de surpresa. Jornalistas e radialistas, fãs, curiosos e interessados pela obra do cantor e compositor cearense não falavam em outra coisa.

Apesar do burburinho provocado pelas possíveis motivações de seu afastamento, o próprio Belchior, que desde 2006 cortara laços com empresários, produtores e a família, declarou que tinha se isolado em uma pousada de um povoado remoto no Uruguai para finalizar o trabalho de tradução para o português da "Divina Comédia", de Dante Alighieri. Desde então, não se tem notícias sobre as atividades do músico, que, nesta quarta (26), completa 70 anos.

Se Belchior, tal qual Rimbaud, transformará seu autoexílio em ato de criação, ainda não se sabe. Mas é fato que o tema da evasão da sociedade está fortemente presente em diversos pontos de sua obra, do primeiro ao último disco autoral, já indicando ao público um percurso de fuga que ele próprio pudesse vir a seguir, considerando que o elemento autobiográfico perpassa a totalidade do cancioneiro do autor de "Apenas um Rapaz Latino-americano".

Além de retratar grupos marginalizados pela sociedade (pretos, pobres, estudantes, índios, nordestinos, retirantes, prostitutas, lista na qual ele faz questão de incluir os artistas), Belchior acumula em suas letras referências ao desejo das pessoas de serem ativamente "gauches", de ficarem à margem das práticas sociais.

Na música "Passeio", do disco de estreia, "Mote e Glosa" (1974), o sujeito que está rodeado pelos prédios de São Paulo afirma querer fugir dali num disco voador. Em "Todos os Sentidos" (1978), a canção "Até Amanhã" deixa bem claro que um reencontro pode não acontecer porque talvez não haja o dia seguinte.

Em "Seixo Rolado", de "Objeto Direto" (1980), o próprio título converge com o conteúdo da música que descreve um indivíduo que "tudo o que tem é seu corpo" e que cai na estrada feito pedra rolante.

'Passeio', de Belchior

PÉ NO MUNDO

A ideia de "ir embora sorrindo, sem ligar pra nada" se expressava já em 1982, na canção "E que Tudo Mais Vá para o Céu", do álbum "Paraíso" (1982), como se antecipasse a atitude do próprio compositor, que botou o pé no mundo, deixando documentos e objetos pessoais para trás.

Se uma desistência repentina dos limites sociais estabelecidos poderia ser qualificada como irresponsável na idade madura, não seria diferente em se tratando de um jovem aventureiro que abandona a escola.

É o que narra na letra de "Rock-romance de um Robô Goliardo" (de "Cenas do Próximo Capítulo", de 1984): "E não me chamem irresponsável/Para que, levar a vida, assim tão a sério?/ Afinal, a vida é, mesmo uma aventura da qual não/ sairemos vivos". Como o personagem da canção, o jovem Belchior tinha largado a faculdade de Medicina no quarto ano.

Também os dissabores da marginalização, tematizados de forma detalhada e irônica em "Jornal Blues (Canção Leve de Escárnio e Maldizer)", de "Melodrama" (1987), coincidem com as próprias dificuldades que ele enfrentou ao morar na rua, quando chegou ao Rio de Janeiro, no início dos anos 1970: "Não, não quero contar vantagem, mas já passei fome com muita elegância".

Nessa correlação entre a obra do autor e a vida da pessoa Belchior, duas músicas mostram-se particularmente reveladoras do distanciamento do artista.

Em "Arte Final", o personagem da canção expressa seu desejo de não ser perturbado: Desculpe qualquer coisa, passe outro dia,/ Agora eu estou por fora, volto logo,/ Não perturbe, pra vocês eu não estou.

Seguindo esse percurso de retirada, "Até Mais Ver" é a canção-despedida de Belchior: "Qualquer distância entre nós, tornada em nada,/ só assinala um novo encontro pra depois".

Não por acaso, essas declarações encerram os dois últimos trabalhos discográficos de Belchior. Em "Elogio da Loucura" (1988) e "Baihuno" (1993) o artista conclui a sua obra e se despede do público, comprovando a frase do poeta e autor de canções Pierre Jean de Béranger (1780-1857): "Minhas canções sou eu".

JOSELY TEIXEIRA CARLOS é professora de linguística, radialista e pesquisadora da USP, com mestrado e doutorado sobre a obra de Belchior.

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