Folha de S. Paulo


Temos de superar ideia de que erudito é melhor, diz na ONU diretor do Sesc

Para Danilo Santos de Miranda, gestor cultural e diretor do Sesc São Paulo, a gestão brasileira da cultura ainda precisa superar questões como a sobreposição da cultura erudita em detrimento da popular. "Do ponto de vista do que está sendo realizado hoje no nosso país, é um processo de amadurecimento em que os campos da cultura e da educação têm muito a evoluir. É uma coisa que incomoda", comenta.

Danilo participa nesta sexta (21), a partir das 14h (horário de Brasília), dos Library Talks, na ONU em Genebra, espécie de mesa-redonda na qual será discutido o papel da arte e das instituições cultuais hoje. Completam o time de oradores Charles Beer, chefe do braço cultural do governo de Genebra, Adam Szymczyk, diretor artístico da mostra Dokumenta 14 (Kassel, Alemanha), Regina Dunlop, embaixadora do Brasil em Genebra, e Barthélémy Toguo, fundador do Bandjoun Station Project, em Camarões.

Lenise Pinheiro/Folhapress
Sao Paulo, SP, Brasil. Data 03-09-2015. Prof Danilo Santos de Miranda. Diretor Regional do Sesc SP. Local Sesc Belenzinho. Foto Lenise Pinheiro/Folhapress
Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc São Paulo

Segundo o diretor do Sesc São Paulo, trata-se de uma reunião não oficial, mas a ação de intercâmbio teria um caráter de política cultural.

O convite veio de Adelina von Fürstenberg, presidente da ART for the World e que já havia trabalhado com o Sesc na exposição AquiÁfrica, realizada no ano passado no Sesc Belenzinho —de acordo com o diretor, as duas instituições também planejam um novo projeto para 2017.

Em Genebra, o gestor cita o educador Paulo Freire e defende integração da cultura com a educação. "Espero que superem a divisão que existe hoje entre o erudito e o popular, como se esses campos fossem absolutamente antagônicos. Tem que permitir que as manifestações culturais de todos sejam consideradas do mesmo padrão, do mesmo nível, do hip-hop à ópera", diz.

Com relação à atuação do governo de Michel Temer no campo da cultura, Danilo afirma que "ainda não percebo com clareza o caminho que está sendo tomado". Mas manifestou-se em maio passado, quando do anúncio do fim do Ministério da Cultura: escreveu um artigo na Folha em que defendia a necessidade da pasta.

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Leia, abaixo, a fala de Danilo Santos de Miranda no Library Talks da ONU

No contexto das comemorações dos 70 anos do Sesc, fui convidado para proferir uma das agradáveis "Library talks" na Organização das Nações Unidas, em Genebra, sobre "o papel da arte e da cultura no mundo contemporâneo". Como diretor do Sesc há 32 anos, numa instituição que quero que se mantenha por mais 700 anos com a mesma energia que imprimo desde então, percebo que o fugaz século XX moldou o mundo e que valeu a pena revisitar conquistas e testemunhos naquele palco de celebração da democracia.

Depois das duas grandes Guerras na Europa, foram recriados conceitos que hoje temos como corriqueiros no nosso dia-a-dia como: juventude, infância, lazer, bem-estar social, arte, etc. O Sesc, Serviço Social do Comércio, foi fundado por um grupo de empresários imbuídos dessa genuína intenção de que a cultura deveria ser defendida como um bem comum a todos os trabalhadores. Isto posto, seria cumprida a finalidade de fortalecer, então, "os sentimentos de solidariedade e confiança" na sociedade, tal qual escrito na Carta da Paz Social - documento que fundamenta o Sesc para o novo cosmos que irrompia com a reinvenção desse pós-Guerra.

A compreensão de uma necessidade de humanizar a vida do trabalhador no século XX, só foi possível - no meu ponto de vista pessoal, inclusive por causa de minha formação cristã - depois de um fundamental instrumento que pôs luz à justiça social do trabalho, a encíclica Rerum Novarum, de 1891, que encoraja a organização dos trabalhadores e o financiamento de medidas que favorecem o acesso da educação à classe operária.

Consequência da encíclica do século XIX, foi criada a Declaração da Filadélfia em 1944, em que os sindicatos e a Organização Internacional do Trabalho redigem em conjunto um documento que intenciona melhorar a qualidade de vida, de acordo com os novos rumos da economia mundial. O impacto de que o mundo revia seus valores é consagrado com a Declaração dos Direitos Humanos de 1948, amplamente reconhecidos, parâmetro para as ações éticas de todos nós até hoje e, honrosamente, fruto dos esforços da própria ONU que me abrigou há poucos dias.

Postular que cultura e arte eram essenciais para aquela outra metade de século que se iniciava, era, então, o mesmo que revigorar o lado mais nobre do ser humano: a convivência para um avanço civilizatório.

Assim, cultura se resume como o conjunto de simbolismos de um povo e de um lugar, uma confluência de valores que Heidegger chamaria de "pré-entendimentos" de uma sociedade com seu habitus, maneiras tácitas, comportamentos, crenças, condutas, forças políticas, consciência reflexiva e identidade de grupo. Esse mesmo grupo escolhe prerrogativas morais, hierarquiza conhecimentos, relativiza experiências, altera conteúdos, questiona o que foi imposto ou repassa em gerações o que lhe é dado. Esse caldeirão de significados vividos em comum promove um campo ético e estratos sociais que classificam os símbolos da cultura ao longo dos anos.

Assim, universalmente, a arte valeu-se do sumo do melhor da cultura antropológica, pois ela foi com frequência interpretada como um conjunto de obras singulares, de cunho intelectual inquestionável, que conta com peritos que a chancelam, como se estivesse descolada, em um plano superior e sacralizado, distinto da cultura da sociedade popular.

O pensador brasileiro Paulo Freire, um dos mais reconhecidos no estudo sobre a cultura como educação, descreveu muito bem em sua obra "A Pedagogia do Oprimido" que a cultura popular ficou por muitos anos subjugada a uma intelectualidade supostamente superior para garantir uma dominação de uma sobre outra. Freire reconhece que não há como humanizar as culturas se não houver a constatação lógica que as racionalidades são complexas e que nenhuma se prioriza sobre outra.

Muitos artistas, pelo contrário, vinculavam a participação do público como inerente à realização da obra, o que denota que não compactuavam com a noção de regalia da arte sobre os saberes populares. Hélio Oiticica, nos anos 1960, famoso por suas performances com a indumentária-obra intitulada Parangolé, apregoava a "incorporação do corpo na obra e da obra no corpo", fazendo com que obra de arte e ser humano se fundissem simbioticamente para que um e outro se tornassem uma coisa única com o mesmo valor ético, sem qualquer valor mercadológico.

Outra ideia difundida no século XX foi a da morte das artes na cultura globalizada. Era recorrente ouvirmos alguns anunciarem: "A pintura morreu. O teatro morreu. O cinema morreu. A música clássica morreu. A história morreu." Enfim, o século XX velou todo o sublime da arte que, no meu entender, tinha um propósito: reestabelecer um outro papel para a cultura e a arte no século XXI. Sim, o teatro, o cinema, a música, as artes visuais e tudo o que foi construído no século XX poderiam até ter morrido, mas estavam prestes a renascer com novas formas de pensamento em um mundo muito mais complexo.

Portanto, durante todo esse processo que impunha um ponto fúnebre ao século XX e à arte, foram muitos os artistas e os analistas culturais que criticaram a interpretação dicotômica banal e equivocada de "cultura antropológica oposta à cultura artística".

A cultura hip hop balizou muito bem o campo da teoria embasada pela prática, pois nos anos 1980, a periferia de São Paulo começou a questionar suas condições urbanas de moradia e representação política. No Brasil, os movimentos sociais suburbanos também se mesclam a um dos ritmos mais autênticos, o samba. Esses gêneros musicais aparentemente tão distintos se uniram em prol de uma transformação social por meio da arte.

A globalização no início dos anos 1990, ainda que ela seja uma das responsáveis pelo grande altar erigido para a cultura de massa e o consumismo descartável, também se abriu para o sincretismo, a transnacionalidade e a mobilidade até chegarmos ao século XXI em que essas fronteiras são cada vez mais líquidas e conceitos como comunicação e verdade se confundem, cultura de massa e textos acadêmicos se misturam, tecnologia e memória se tornam dependentes, fazendo com que desapareçam as bruscas definições entre fatos e ficções, arte e vida.

Se aprendemos com os gregos que episteme era o saber científico e puro e a doxa um mero juízo pessoal, cada dia mais personalizamos esses juízos para que eles se tornem garantia de sucesso e de autenticidade. Vide a ascendência e o mercado criados no século XXI que fizeram nascer os youtubers, os bloggers, os chamados "influenciadores digitais" ou mesmo um outro termo mais antigo, o de "formadores de opinião". A opinião, atualmente, talvez valha mais que uma garantia científica, por isso, criar uma ficção e fazer dela um fato é algo rápido e transformar sua vida em uma fantasia paralela é um hábito praticamente diário nas redes sociais.

Foi essencial, no entanto, o ganho que o século XXI teve com a portabilidade com a forma em que a câmera móvel, a acessibilidade às informações rápidas e a gravação e reprodução do som estão ao alcance das pessoas - principalmente nessa segunda década de século. O conceito de lazer também foi diluído, tendo sido essencial no pós-Guerra, mas hoje em dia não necessariamente está relacionado com um lugar determinante para usufruí-lo. Ora, não é só num parque se desfruta do tempo livre com alguma qualidade, mas, em um lugar prosaico é possível sacar o celular e visitar alguma obra de algum museu, rever aquele trecho do filme favorito, escutar uma música com certa individualidade.

Se digladiar contra a futilidade das redes sociais, portanto, não leva a nada. Elas são somente o suporte para fatos e ficções que abastecem o universo cultural. Se os conteúdos das redes são profundos ou rasos em demasia, esta é uma questão para a cabeça educadora e o uso que se faz do suporte. Se o conteúdo é determinado por alguém, natural que as instituições culturais e os artistas sejam adeptos das facilidades tecnológicas e da realidade aumentada do mundo contemporâneo.

De agora em diante, portanto, precisamos acreditar que os centros culturais do futuro próximo podem fornecer uma programação e uma força educativa tão importante online quanto proporciona sob uma estrutura física. Aliás, só desta maneira vamos supor que as ideias vão chegar mais rápido a comunidades e países longínquos e que as culturas irão dialogar com mais eficácia. A autoria dessas ideias, boas ou más, não é o que se questiona. A internet, as mídias de hoje formam uma rede que se sustenta, se retroalimenta e descarta ou esgota o conceito em diferentes instâncias de interpretação.

Se não conjeturarmos o futuro da cultura envolto em um sistema com digno acesso, não romperemos barreiras dolorosas e perversas da sociedade como o racismo, o sexismo, a xenofobia, o desprezo para com os refugiados, para citar algumas mazelas que a cultura tem o poder para remediar.

A cultura do século XXI não tem outra escapatória senão deixar a realidade o mais distante possível de uma iminente barbárie, de uma nova guerra, de um novo estranhamento desumano. A posição pode parecer utópica, mas a ética cultural precisa ter como matéria-prima a utopia e é dela que me sirvo diariamente para levar à frente um propósito com nenhuma projeção mercantilista como um projeto sociocultural e artístico.

Nessa perspectiva, lembro que os anos 2000 aventaram com bravura a radical mudança positiva que a chamada economia criativa prometia. Primeiramente, não houve sequer nenhuma transformação radical no modelo fordista de trabalho, que é, na prática, o mesmo desde o século XIX. Segundo e não menos importante, é preciso entender que tem de haver no mundo inúmeras coisas que são idealmente sem fins lucrativos. A arte é uma delas. Não há compatibilidade em pensar em lucro quando imaginamos uma construção do simbólico, quando pensamos na capacidade de nos solidarizarmos com metáforas alheias, quando nos surpreendemos com os hábitos e o comportamento ou mesmo com a técnica que se põe diante de nós. Quero ressaltar que todo artista deve ser remunerado e bem remunerado, como espero que seja feito com todos os trabalhadores. No entanto, no que tange o mercado dos objetos de arte, ele deve falar mais à construção do simbólico e da necessidade de expressão de um povo e de seu tempo e não prioritariamente ao investimento de um colecionador. A Bienal de Veneza, a Bienal de São Paulo, a Documenta de Kassel e o próprio Sesc são exemplos de instituições que promovem ações medulares para as artes e parâmetros indispensáveis para pensar o mundo cultural hoje. Tais entidades endossam a formação do homem contemporâneo ao viabilizar a expressão de seu tempo. Parafraseio um grande amigo e também conhecido de todos, o músico e político Gilberto Gil, dizendo que a cultura "será uma peculiar amálgama de tragédia e celebração da vida". Concluo nessa parte, que ambas não serão construídas sob os lucros, nem contra os lucros, mas apesar dos lucros.

Assim, estimo que seja mais prudente não concebermos os centros socioculturais de hoje e do futuro próximo como oásis, onde a cidade fica de fora e tudo se apresenta como belo bom e justo do lado de dentro. O futuro necessita de mais ágoras que de oásis: um palco dado onde se espelha a sociedade e o qual permite muitos núcleos críticos para o homem comum se conscientizar de sua própria cultura e de outras - bem como transformá-las. Muitas vezes o ser humano nascido no século XX fala de inovação como se já tivesse visto tudo. Nas diferentes culturas serão analisadas e postas à prova as compilações dos novos clássicos mundiais, aqueles que ainda não foram criados e que, entretanto, continuarão existindo.

Desta forma, nessa oportunidade de falar sobre o Sesc na ONU pude levar uma esperança de que as conquistas culturais sejam permanentes, feitas com os insumos das sociedades atuais, cuidando sempre das manifestações estéticas que são produzidas no agora, forças máximas do humano, sem negligenciar a criação artística que está em permanente busca da liberdade e não mais do sublime, como já nos trouxe o século XX, que a dessacralizou. Como utopia é minha matéria-prima e meu compromisso pessoal e institucional, faço aqui a menção ao livro de Thomas More lançado há exatos 500 anos e que tinha uma intenção clara de não deixar as propostas alternativas morrerem nas sociedades. Ingênuo, desiludido ou mesmo encantado em demasia com os descobrimentos do Renascimento, a utopia para More é sempre o reflexo da esperança e dos desejos coletivos de seu tempo. Em esperança e desejos me fio para o futuro da humanidade.


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