Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Produtores de Sabotage fizeram jus ao ouro que tinham nas mãos

Difícil isolar uma obra póstuma da comoção que costuma cercar seu lançamento. Ou da incerteza sobre a real vontade do artista em relação ao destino daquele material.

Os produtores que deram vida aos raps gravados por Sabotage mais de 13 anos atrás muito provavelmente se depararam com esses questionamentos durante o trabalho de organização, compilação e produção das 11 faixas que compõem o álbum homônimo divulgado na segunda (17).

Era o mais aguardado disco do rap nacional; não é exagero defini-lo assim. Demora e expectativa se retroalimentaram na última década, e é um erro achar que a espera ficou circunscrita à periferia ou aos fervorosos fãs de hip-hop.

Até ser interrompido por quatro tiros, em 2003, Sabotage foi o mais habilidoso costureiro das diferenças socioculturais que o cercaram.

Parceiro de nomes familiares ao leitor da Folha –Paulo Miklos, Beto Brant, Hector Babenco– e "parça" de outros tantos que frequentam menos o noticiário cultural –Rappin Hood, Sandrão, Helião–, o rapper demonstrava cruzar pontes sem dificuldade. Musicalmente, inclusive.

Chico Buarque, Pixinguinha, Racionais e Sandy & Junior compunham seu repertório ao lado de Nas, Jay-Z, Eminem, Malcom McLaren.

Sua "levada" (estilo de rimar) era tida como algo fora do comum, mesmo para os mais experientes.

Potência, cadência na entonação, tônica nas sílabas certas, clareza. Aos leigos, costuma passar despercebida a destreza de despejar versos sobre batidas repetitivas –que é como os menos interessados costumam interpretar o rap. Mas há uma técnica vocal apurada envolvida no rap (que significa "rhythm and poetry", ou ritmo e poesia).

Nesse aspecto, o núcleo de produção Instituto tinha ouro nas mãos. As letras deixadas por Sabotage precisavam apenas de molduras –ou das molduras certas.

O grupo de artistas envolvido nessa construção foi determinante para o resultado. Há diversidade, mas não cacofonia. Havia o risco do efeito colcha de retalhos ruim, da desconexão entre os elementos –afinal o "maestro do Canão" não estava mais ali. Não foi o que aconteceu.

Para os que ainda consomem música levando em conta a construção de um álbum, há coesão e coerência. E, para quem dispensa o conjunto e prefere o self-service do sistema de singles (tão valorizado pelos serviços de streaming), há faixas candidatas ao "repeat" ("Superar", "O Gatilho", "País da Fome").

Em termos de temática ou abordagem, nenhuma das letras envelheceu –ao contrário. "Se esperar, apodrece, se decompõe/ Se a gente faz, corre atrás, pede a paz, eles esquecem/ Sempre assim, crocodilo, hoje, só rasteja em solo fértil/ Crime, ouro, dólar, bola fora, esquece/ Os vermes eleitos querem, seus votos, preferem."

SABOTAGE
GRAVADORAS One RPM, Selo Instituto e Sabotage Prods Arts
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