Folha de S. Paulo


Movimento SP Invisível quer criar livro de perfis de moradores de rua

SP Invisível/Reprodução
Caco, morador de rua fotografado pelo SP Invisível
Caco, morador de rua fotografado pelo SP Invisível

A vida como ela não é. Este era o pensamento do estudante de jornalismo Vinícius Lima em 2013, ao passar os olhos pelas fotos do Instagram. "Era tudo muito fake: todo mundo postava fotos de gatinho, cachorrinho, selfie de viagem...", diz. "Aquilo não era a vida real, mesmo."

Em dezembro de 2013, essa percepção levou Lima e alguns amigos —"uns 30, 40"— a fotografar "o que é invisível na cidade e postar no Instagram", ou seja, tudo que não se vê retratado para a posteridade. A ideia era simples: desestabilizar a rotina dos seguidores na plataforma de imagens, onde pululam fotos fofas —e bem distantes da realidade.

A brincadeira deu origem a imagens de lixo nas calçadas, buracos na rua, prédios abandonados, ônibus lotado. "Notamos que apareceram nas fotos muitas pessoas em situação de rua, fotografados, mas à distância", conta. Aquele dia ficou conhecido no grupo de Lima e seus amigos como SP Invisível.

O nome voltaria a ser usado meses depois, em março de 2014. Lima e um amigo, o estudante de cinema André Soler, estavam lembrando das fotos de invisíveis quando decidiram criar um movimento e estender a experiência.

"A gente percebeu que o cara [morador de rua] não era invisível: ele está lá, nós o fotografamos! E esse cara tem uma história que talvez seja legal contar", diz.

Surgiu daí a página de Facebook SP Invisível. Com depoimentos e retratos de pessoas em situação de rua, seu objetivo é "abrir os olhos e a mente através das histórias dos invisíveis para motivar as pessoas a terem um olhar mais humano" —este é o texto que consta na página, hoje com mais de 330 mil fãs.

Um desses moradores de rua é Caco, de 55 anos. De acordo com o depoimento colhido pelo pessoal do SP Invisível, Caco veio para São Paulo com 11 anos, não gosta de ser chamado de hippie e teve um filho que morreu atropelado enquanto corria atrás de uma pipa.

Segundo Lima, mais de 500 pessoas em situação de vulnerabilidade foram registradas desde 2014 —cem delas devem sair em livro, caso o grupo consiga sucesso em captar quase R$ 58 mil por meio de financiamento coletivo, em catarse.me/spinvisivel.

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LEIA ALGUMAS HISTÓRIAS DO LIVRO

Raimundo

SP Invisível? Esse é o nome? Vamos fazer esse nome crescer! Bora conversar sim, tava indo pegar uma pedra, esse papo me fez não ir. Só que ó, toma cuidado com as histórias porque essa imprensa que tá aí não sabe o que fala de nós. Meu nome é Eduardo Raimundo, to com 36 anos. Depois de acabar aqui, vamos tocar um violão ali no canto, só pra a gente se divertir.

Eu vim parar aqui por causa do crack. Conheci a pedra em São Miguel Paulista. Primeiro foi o álcool, depois a cocaína, mas aí eu vi que tava pra morrer e fiquei uns anos sem usar nada, só que há uns três anos eu voltei pras drogas e fui direto pro crack. Sou um rapaz incontrolável.

Lembro até hoje do dia que vim pra cá: eu e meu filho, que tinha 9 anos na época, viemos resolver umas coisas de documentação no centro e demos uma pausa pra descansar no Parque da Luz. Enquanto ele brincava, eu falei pra ele ficar lá que o papai já voltava, ele é muito obediente e ficou. Fui só andar, mas nesse passeio passei pela cracolândia, bateu uma abstinência, dei uns tragos e fiquei por lá.

Depois de uma vida de merda fumando e bebendo, fumando e bebendo, eu fui pra Santa Luzia e lá eu acordei e fui buscar a igreja católica. O padre de lá deixou eu trocar cartas com a minha mulher e sabe o que eu descobri? Antes de sair de casa naquele dia, ela colocou no bolso do meu filho um bilhete com o endereço e o telefone de casa e disse, 'se o papai fizer besteira, me liga e me espera'.

Ele hoje tá com 13 anos e é um baterista fora de série. Os dois falam pra eu voltar, minha mulher ainda me ama, mas eu tenho medo da reação deles se eu aparecer assim todo sujo e crackudo. O mais difícil é você se superar.

SP Invisível/Reprodução
Raimundo, morador de rua fotografado pelo SP Invisível
Raimundo, morador de rua fotografado pelo SP Invisível

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Maria

Se for coisa de igreja, nem vem que eu não quero conversa. Quando eu tinha 20 anos, trabalhava de faxineira e um produto de limpeza caiu no meu olho, depois disso eu fiquei cega e tive que vir pra rua pedir dinheiro. Hoje, tenho 71 anos, meu nome é Maria e eu venho aqui pra conseguir pagar o aluguel e ajudar meus três netos.

Eu tinha duas filhas, uma que não quer saber de mim, só quer me roubar, aprendeu com o marido dela, e tem a mãe dos meus netos que morreu junto com o marido porque caguetaram um cara na favela. Por isso que hoje os meninos moram comigo, eles são tudo pra mim.

Só meus netos que gostam de mim, eles me ajudam em tudo, são muito companheiros, lavam a roupa, limpam a casa, fazem tudo pra me dar uma força quando não estão na escola. Um quer ser mecânico, outro médico e o outro dentista, o mais velho tem nove anos.

Aí enquanto eles estão estudando, eu venho pra cá pra juntar um dinheiro pro nosso quartinho lá em Francisco Morato. Só que eles não podem saber, eles acham que eu trabalho em outra coisa. Eu escondo por amor, não é legal falar que a vó tá pedindo.

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Maria, moradora de rua fotografada pelo SP Invisível
Maria, moradora de rua fotografada pelo SP Invisível

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Maria de Fátima

Meu nome é Maria de Fátima, tenho 59 anos e fiquei 20 na rua. Nesse tempo na calçada eu sofri muito. Passei frio, fome e vi bastante coisa errada. Nasci em Avaré, interior de São Paulo, pertinho de Ourinhos. Quando meus pais morreram, resolvi me mudar para Piracicaba e morar com as minhas irmãs. Não consegui me adaptar e saí de lá. Fui parar na rua porque precisei me mudar para São Paulo em busca de emprego.

No primeiro ano consegui um serviço na Prefeitura, infelizmente não fiquei muito tempo. Me casei logo depois. Não era feliz com o meu marido. Ele saía de casa de manhã e voltava de noite bêbado pra me bater e me machucar. Fiquei sozinha depois da morte dele e sem dinheiro para pagar o aluguel. Tenho 3 filhos e uma neta linda e saudável. Faz tempo que não vejo eles.
A rua só me mostrou violência, roubo e mortes. Já mataram um cara na minha frente. Graças a Deus, nunca fui abusada e nem agredida, mesmo sendo mulher.

Se eu tenho muitos amigos? Vou te falar a verdade, meu querido: meu único amigo é Deus, só confio nele. Costumo ir bastante à igreja. Tenho um namorado, passeio com ele no parque e vou até à casa dele para fazer uma visita toda semana. Ele é carinhoso comigo. Agora estou morando em um albergue, pretendo sair de lá. Meu sonho é arrumar um quartinho para morar com a minha família.

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Maria de Fátima, moradora de rua fotografada pelo SP Invisível
Maria de Fátima, moradora de rua fotografada pelo SP Invisível

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Geralda

Jesus me deu um novo nome depois que fui batizada pelo Espírito Santo. Hoje, eu me chamo Geralda, como o Paulo da Bíblia que antes chamava Saulo. Não tô morando na rua, mas há 23 anos eu saio pra ungir as casas da região. Jesus me chamou pra essa missão e se eu ficar dentro de casa, não dá pra cumprir o que ele me mandou.

Eu vivia de prostituição, usava muita droga, bebia muito, até que em 1980 eu entrei pra igreja, mas mesmo assim continuei me prostituindo, só que uma transformação foi acontecendo aos poucos. Em 82, eu parei de usar droga, mas só lá pra 93 eu saí da prostituição.

Quando eu comecei a ir pros cultos, eu levava um lencinho com o Salmo 91 pra todos os programas, eu lia e orava com ele antes e depois de todos os clientes, assim fui mudando.

Eu já ungi as casas do Pacaembu até que começou a aparecer uns sinais nas paredes dos prédios, era Jesus falando pra eu mudar de bairro, então agora eu vim pra Barra Funda. Eu tenho que ser luz porque o mundo jaz do maligno.

SP Invisível/Reprodução
Geralda, moradora de rua fotografada pelo SP Invisível
Geralda, moradora de rua fotografada pelo SP Invisível

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