Folha de S. Paulo


No teatro, 'Leite Derramado', de Chico Buarque, vira retrato irônico do país

Membro de uma família tradicional, com seus elitismos e preconceitos oligárquicos, Eulálio D'Assumpção, protagonista de "Leite Derramado", é uma consciência do Brasil.

A analogia é o que guiou o diretor Roberto Alvim, da companhia Club Noir, em sua adaptação teatral do livro de Chico Buarque, que estreia nesta sexta-feira (14) em São Paulo, depois de sessões no Festival Mirada, em Santos. Em dezembro, a peça segue para o Sesc Ginástico, no Rio.

No livro, Eulálio, já ao fim da vida, vê-se decadente na cama de um hospital infecto. Narra, moribundo, a história de sua linhagem de imigrantes portugueses, barões do Império e políticos corruptos e sua relação de amor e ciúme da mulher. Passa por sua conivência com a ditadura e a ironia de ver o próprio neto tornar-se guerrilheiro.

Alvim enxugou a trama de 200 páginas para pouco mais de uma hora de peça. Tirou o foco da mulher (que ocupa boa parte da história do livro) e sofreu influência dos recentes acontecimentos políticos.

"O que me interessava era a história do país, não o lastro da pequena subjetividade específica do personagem", explica o encenador.

Ele descreve o trabalho como um "haicai cênico": uma redução poética da obra original (há na peça mais verso do que prosa) e que usa a poesia como uma crítica política.

O espetáculo se torna, assim, um retrato irônico do país. Logo na abertura, lê-se um cartaz com os dizeres: "Nossa tragédia é toda sua". Ao som de "Aquarela do Brasil", entram figuras com cabeças de moscas que fazem uma pantomima de "Matar ou Morrer", chanchada dirigida por Carlos Manga em 1954.

Entre as referências nacionais, se contrapõem à trajetória de Eulálio figuras ufanistas: placas com seres da fauna e do folclore brasileiro em desenhos coloridos, de ingenuidade quase infantil.

Ali, Alvim se distancia um pouco da estética de corpos estáticos e escuridão pela qual se caracterizou. Tudo é costurado pela trilha sonora criada pelo filósofo Vladimir Safatle, colunista da Folha, com composições quebradas, de tom espectral.

Ao fim da peça, o diretor acrescenta um trecho escrito por ele mesmo, um "desmanche", como classifica, que "coloca Eulálio não como esse vilão fora da gente, esse herdeiro, mas como nós todos".

"O espetáculo parte desse pensamento de amor ao próximo", continua o encenador. "Eulálio é um filho da puta. E, no entanto, quando ele se despedaça inteiro, eu sou atravessado pela sua dor. É preciso ter empatia."

VERSÕES

Antes do diretor, outros nomes, como os atores Marco Nanini e Ney Latorraca tentaram adaptar o livro ao palco. Há seis anos, Marília Pêra (1943-2015) chegou a estudar uma versão em monólogo, que nunca saiu do papel.

Alvim começou sua adaptação há um ano e trabalhou em sete versões até chegar à peça que ora estreia –nas sessões, será distribuída uma espécie de diário de bordo feito pelo crítico Wellington Andrade, que acompanhou toda a produção. Desde o início, o diretor se encontra com o autor, de quem, conta, teve carta branca desde o primeiro rascunho do espetáculo.

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De lá para cá, a peça teve diversas mudanças de elenco e de tamanho. Coube à atriz Juliana Galdino o papel do protagonista: ela faz uma caracterização bem marcada, de rosto duro e gestual robusto, o que Chico, segundo o diretor, considerou "o Eulálio que sempre imaginei".

LEITE DERRAMADO
QUANDO qui. a sáb., às 21h; dom., às 18h; até 13/11
ONDE Sesc Consolação, r. Doutor Vila Nova, 245, tel. (11) 3234-3000
QUANTO R$ 12 a R$ 40
CLASSIFICAÇÃO 16 anos


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