Folha de S. Paulo


Polonês que criou a casa mais estreita do mundo constrói puxadinho em SP

No vão entre dois prédios do antigo gueto judeu de Varsóvia, a estrutura metálica quase desaparece, a não ser quando rebate um solitário raio de sol. Jakub Szczesny, o arquiteto que construiu a casa mais estreita do mundo, caminha uns passos à frente e abre o alçapão que leva a esse oásis de pouco mais de um metro de largura no coração da capital polonesa.

"Varsóvia é um Frankenstein, e o problema do Frankenstein é que em muitos pontos as partes do corpo dele não estão bem costuradas", ele diz. "Queria dar vida a esse lugar onde não havia nada, porque vida é uma cola, o que junta dois momentos da história."

Szczesny, no caso, lutou para construir a casinha de 14 metros quadrados entre prédios de épocas distintas, quase um antídoto às rachaduras ainda visíveis na superfície da cidade. Nas ruas do centro, o contorno do distrito onde nazistas confinaram os judeus durante a Segunda Guerra continua marcado no asfalto, às vezes coberto por anúncios das garotas de programa.

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Obra do arquiteto polonês Jakub Szczesny, que terá mostra na Casa do Povo.( Foto: Divulgação) ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Lateral da casa Keret, a mais estreia do mundo, obra de Jakub Szczesny, em Varsóvia

Destruída por bombardeios e refeita pelos soviéticos, Varsóvia virou um mosaico de estruturas da era comunista ao lado de torres tortas de metal e vidro, grotescos espetáculos de arquitetura pós-moderna. É um território hoje abalado por brigas entre atuais donos de imóveis e herdeiros dos que fugiram do Holocausto.

Da mesma forma que os judeus poloneses se espalharam pelo mundo, outro lado dessa história chega a São Paulo em breve numa nova moradia que Szczesny vai construir no terraço da Casa do Povo, centro cultural no Bom Retiro que ele descreve como "ruína viva" e onde deve viver por um mês.

Esse prédio dos anos 1950 erguido em homenagem aos que morreram na Segunda Guerra sobrevive, de fato, em estado precário. Já foi escola, teatro e sede de um jornal, mas hoje, com charmosos buracos nos pisos de madeira, o lugar virou uma plataforma de reflexão sobre as diásporas que convivem no bairro do centro paulistano, dos judeus que vieram no pós-Guerra aos coreanos e bolivianos de agora.

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Obra do arquiteto polonês Jakub Szczesny, que terá mostra na Casa do Povo.( Foto: Divulgação) ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Interior da casa construída por Jakub Szczesny no antigo gueto judeu de Varsóvia

"Vou montar uma instalação que lembra um varal com roupas secando. Mas é um abrigo que imita algo banal, ligado à família, com cheiro de roupa lavada", diz Szczesny. "É muito difícil atingir essa esfera da banalidade para aqueles que migram para outro lugar. A banalidade serve de véu para esconder existências mais complexas, identidades de pontos distantes."

No fundo, toda a obra de Szczesny parece refletir sobre a construção da identidade num mundo em transe. Ele fala de um processo de décadas detonado pelo Holocausto, mas também do impacto do nacionalismo exacerbado que emerge em países às voltas com uma onda conservadora –dos Estados Unidos de Trump ao Reino Unido do "brexit", passando pelo levante de um partido de ultradireita na Polônia.

"O que vemos hoje é que nacionalismos estão criando fronteiras de exclusão", diz o arquiteto. "É a ideia de que se você não pensa como a gente, você é um traidor, não é um patriota verdadeiro."

No ano passado, Szczesny passou meses numa ocupação no centro de São Paulo também trabalhando sobre questões de identidade. Num antigo hotel na esquina das avenidas Ipiranga e São João, onde hoje moram trabalhadores do centro da cidade, o arquiteto pediu que cada família tentasse definir seus valores para depois criar brasões à moda da velha aristocracia.

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Obra do arquiteto polonês Jakub Szczesny, que terá mostra na Casa do Povo.( Foto: Divulgação) ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
O escritor israelense Etgar Keret, primeiro inquilino da casinha, cochila no quarto

Esses símbolos então foram hasteados em bandeiras na fachada da ocupação, como espécie de aviso que os inquilinos vistos como forasteiros também trazem uma bagagem cultural e histórica.

"No século 20, São Paulo atraiu muitas classes médias da Europa também", lembra Szczesny. "Foi talvez a cidade com o maior número de intelectuais que puderam moldar suas noções de identidade."

UTOPIA ELÁSTICA

Enquanto o arquiteto investiga os desdobramentos dessas levas de imigração no Brasil, sua obra mais recente na Polônia é quase uma provocação. Em Wroclaw, no oeste do país, Szczesny construiu uma enorme escada numa praça pública da cidade e convidou quem passasse por ali a subir e olhar a própria vizinhança lá do alto usando binóculos ultrapotentes.

Sua obra tentava desafiar a letargia de um lugar que parece ter congelado depois de tantas convulsões ao longo da história. "Não acredito em mudar a vida de um lugar nem na presença pontual de um artista", diz Szczesny. "Mas ali eu queria deixar que vissem cada detalhe da vida dos outros. Talvez com isso fosse possível desenvolver novas ideias."

Mais uma vez, tal qual sua casa que parasita o vão entre os prédios de Varsóvia, Szczesny tentava materializar a utopia. "Na Polônia, utopia é uma palavra elástica, que pode abarcar tudo até o ponto em que ninguém se importa que seja realidade", ele diz. "Faço projetos contra a realidade."

JAKUB SZCZESNY
QUANDO abre em 15/10; de ter. a sáb., das 14h às 19h; até 6/11
ONDE Casa do Povo, r. Três Rios, 252, tel. (11) 3227-4015
QUANTO grátis

O jornalista SILAS MARTÍ viajou a convite do Instituto Adam Mickiewicz, de Varsóvia.


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