Sabe como um editor faz para se matar? Ele sobe na pilha de livros encalhados –motivo de sua terrível dor de cabeça– e pula. Pelo menos é essa a piada corrente no meio, para ilustrar o problemão que é se livrar das obras que não deram certo.
Quando nem fazer promessa para São Jerônimo, padroeiro dos editores, dá certo, uma das soluções é destruir os livros –ou "transformá-los em aparas", eufemismo preferido pelos profissionais do ramo.
O assunto veio à baila na semana passada, revestido de indignação com a notícia de que a Cosac Naify poderia destruir os livros de seu estoque que não fossem vendidos até o fim do ano. À Folha a editora afirmou que essa era apenas "uma das possibilidades".
Pode parecer uma medida radical, mas é um caminho ao qual a maioria das editoras apela –aqui e no mundo.
A última edição da pesquisa de produção e vendas do setor, realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, mostra que, em 2015, 57 milhões dos 446 milhões de exemplares impressos no país não foram vendidos.
Em geral, o argumento dos editores é que é caro manter os livros em galpões alugados –e nem sempre promoções ou vendas a empresas de saldões acabam com o estoque. De todo modo, eles veem a medida como "a última opção".
"É triste, num país com o baixo índice de leitura do Brasil, vender livros como aparas. É quase a mesma coisa que jogar no lixo. É o último dos recursos. No ciclo de vida de um livro, há outras opções antes", diz Sônia Jardim, presidente da Record.
O valor das aparas é irrisório. De acordo com a Anap (Associação Nacional de Aparistas de Papel), o preço hoje está em cerca de R$ 0,60 a cada quilo. Um livro como "O Código Da Vinci" (Arqueiro), que está longe de ser um encalhe, hoje custa R$ 44,90. Transformado em aparas, valeria R$ 0,40.
Como em geral o mercado de aparas trabalha com toneladas, seria preciso uma pilha de 33 metros da mesma obra para atingir a cifra (de fato, um editor morre se pular dessa altura, que equivale a um prédio de 11 andares).
Uma vez picotados, é provável que os livros virem papel higiênico –e não dos bons, porque os de folha dupla preferem fibras virgens de celulose. De acordo com a Anap, 70% da produção vai para a indústria desse tipo de papel.
De todo modo, produtores de aparas consultados pela reportagem dizem ser raro receberem livros para destruição.
"Não temos um número, porque não é significativo. A maior parte do fornecimento é de sobras das gráficas. E o papel do livro está em quarto lugar na escala de qualidade, por conta da tinta", diz Pedro Vilas Bôas, consultor da Anap.
Por que então não doar o encalhe para bibliotecas? Editores em geral reclamam de precisarem arcar com a logística de uma doação –somado à crença de que bibliotecas não têm interesse em receber centenas de exemplares de um mesmo título.
"É preciso ver os contratos [com os autores, se permitem a doação], caso a caso. Quando o autor é estrangeiro, pior ainda. Há o frete da doação também. Doar não é uma coisa simples", diz Luis Antonio Torelli, presidente da Câmara Brasileira do Livro.
Ele destaca ainda que já trabalhou com franquias internacionais de livros cujos contratos determinavam que, quando expirassem, o estoque devia ser destruído.
"Há canais para doar o encalhe, como o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, mas os editores não costumam gostar de doar para o governo", diz Galeno Amorim, ex-presidente da Biblioteca Nacional.
Amorim vê na rejeição em doar para o governo o medo –não infundado– de que o poder público deixe de comprar livros se passar a recebê-los de graça. Em anos bons, as compras governamentais chegam a representar um terço do faturamento do ramo.
A destruição dos livros não é uma questão só no Brasil. A editora portuguesa Bárbara Bulhosa, da Tinta da China, diz que nunca precisou destruir seu encalhe –mas que os grandes grupos no país o fazem.
"Acabei de doar 24 mil livros para o Ministério da Cultura. Mas publico obras de referência, por isso eles quiseram", diz Bárbara.
Para ela, a produção de encalhes numerosos está relacionada à concentração do mercado global em grandes grupos, com seu foco nos best-sellers –que costumam ter enormes tiragens e nem sempre são o foco das bibliotecas públicas.
"Por isso acho um absurdo destruírem o estoque da Cosac. Eles produzem livros como nós. Exportem para Portugal, tenho certeza de que haverá quem compre."