Folha de S. Paulo


Manuscrito 'brasileiro' é peça central de mostra argentina sobre Borges

Marcelo Huici/Divulgacao
Detalhe de manuscrito de
Detalhe de manuscrito de "A Biblioteca de Babel", do brasileiro Pedro Corrêa do Lago

Um dos grandes colecionadores do Brasil, o historiador, editor e curador de arte Pedro Corrêa do Lago, 58, um apaixonado por documentos antigos, só mostra aos mais próximos sua coleção de cartas e manuscritos com nada menos de 40 mil peças.

"Colecionar é um prazer solitário e poder compartilhar as peças com quem também gosta e entende é uma oportunidade rara. Senti-me frustrado quando mostrei, num outro dia, para um artista inglês uma carta do Maquiavel, e ele não tinha ideia de quem fosse", conta à Folha.

Quando viu uma capa da "Ilustrada" de maio deste ano, em que o escritor argentino Alberto Manguel, 68, era entrevistado por estar assumindo o posto de diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, cargo que havia pertencido a seu tutor, Jorge Luis Borges (1899-1986), achou curiosa a coincidência.

Afinal, Corrêa do Lago também chefiou a Biblioteca Nacional brasileira e, como Manguel adolescente, escreveu sob o ditado de Borges numa visita ao escritor, aos 19 anos. Quando começou a ficar cego, era comum que Borges pedisse a amigos ou a bons leitores que se aproximavam dele que lessem ou escrevessem a seu pedido.

Meses depois, o colecionador soube que Manguel estaria em São Paulo para um debate com o historiador norte-americano Robert Darnton, num evento de comemoração dos 30 anos da editora Companhia das Letras, em agosto.

Sem grandes pretensões, Corrêa do Lago foi à palestra, sentou-se ao fundo e, ao final, aproximou-se de ambos.

Contou-lhes que tinha documentos franceses do século 18 que poderiam interessar a Darnton e manuscritos de Borges que talvez acendessem a curiosidade do argentino, pois também soubera da mostra de originais raros do autor de "O Aleph" que inaugurara a gestão de Manguel na biblioteca. Combinaram de almoçar com Corrêa do Lago para ver os papéis.

Manguel descreve à Folha como foi o encontro, no dia seguinte, com o original de "A Biblioteca de Babel", um dos contos mais célebres do autor argentino, que Corrêa do Lago comprara de um livreiro norte-americano.

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Mostra em Buenos Aires que reúne manuscritos de Jorge Luis Borges (Marcelo Huici/Divulgação) ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Vista da exposição em cartaz na Biblioteca Nacional

"É um autêntico tesouro, foi uma emoção tão grande vê-lo que me faltou voz", conta. "Borges fazia vários rascunhos de suas histórias, e esse é um rascunho com muitas correções, opções de palavras, portanto é quase como um mapa de como ele pensou o conto, que, na minha opinião, é um dos mais importantes da literatura universal."

Na famosa história, Borges imagina uma biblioteca que parece ser infinita por conter todos os livros possíveis de serem escritos, mas com um limite de 410 páginas.

"'A Biblioteca de Babel' é um inferno intelectual: todos os livros estão nela, mas milhões desses são textos sem sentido, letras repetidas que não significam nada. E também há muitos textos falsos, e a demonstração dessa falsidade, e a demonstração da falsidade dessas demonstrações", diz Manguel.

"Borges nos sugere que, onde há tudo é como se não houvesse nada, porque, como na internet, a unidade da biblioteca depende dos métodos ou instrumentos de busca. Que o texto esteja na tela ou no papel não muda essa lei inflexível: toda biblioteca é útil na medida em que um leitor saiba utilizá-la."

Ao notar a emoção do interlocutor, Corrêa do Lago permitiu imediatamente que o documento, composto de nove folhas de caderno de contabilidade (suporte muito usado por Borges) escritas com uma letra minúscula, viajasse no dia seguinte com Manguel à Biblioteca de Buenos Aires, onde está exposto por empréstimo por seis meses.

ARTESANATO

Até a chegada do manuscrito "brasileiro" de "A Biblioteca de Babel", a grande estrela da mostra "Borges - El Mismo, Otro", parte das comemorações dos 30 anos da morte do autor, era o original de "Pierre Menard, Autor do Quixote", uma das obras mais engenhosas do autor.

O texto, apresentado como se fosse uma resenha dos trabalhos de um escritor francês fictício, lista os feitos desse Pierre Menard e sua tentativa obsessiva de "reescrever" o "Dom Quixote", obra-prima do espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), palavra por palavra.

Também estão na mostra peças do acervo da própria Biblioteca Nacional, versões de alguns contos ("Tema do Traidor e do Herói", "Emma Zunz", "La Biblioteca Total").

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O escritor Alberto Manguel, diretor da Biblioteca Nacional argentina, junto a manuscritos do conto
Alberto Manguel junto a vitrine de 'A Biblioteca de Babel'

Era comum que Borges escrevesse os contos várias vezes, trocando parágrafos de lugar, mudando a linha narrativa ou mesmo a conclusão, até chegar a uma versão final.

Para Manguel, analisar seus manuscritos é uma forma de aproximar-se do modo "artesanal" de construção dos contos. "Interessava-lhe a estruturação do texto, a relação de uma palavra associada à outra pelo ritmo, pela música da prosa ou do verso e também pelo sentido mais exato de um termo", diz.

"No manuscrito de 'A Biblioteca de Babel' vê-se a busca meticulosa desse mecanismo verbal perfeito, propondo-se várias opções, riscando as que não o satisfaziam, armando e rearmando cada frase. É uma radiografia do pensamento criativo de um mestre das palavras", explica.

Manguel conta que, além de estar exposto ao público, o documento tem sido alvo de seus bibliotecários, que tentam descobrir quais palavras estão detrás das que foram rejeitadas por Borges.

O autor de "Uma História Natural da Curiosidade" (Companhia das Letras) explica, ainda, que as correções contínuas que Borges impunha a seus textos eram a própria definição dele para a literatura. "Ele costumava dizer que todo texto é um rascunho, e que a noção de texto definitivo pertence apenas à religião ou ao cansaço."

Manguel gostaria que a Biblioteca Nacional, que pertence ao Estado argentino, comprasse o original emprestado por Corrêa do Lago –hipótese ora distante, pois a instituição não tem verba, e o brasileiro não pretende vendê-lo. "É um dos manuscritos literários de maior valor no mundo", afirma o argentino.

A mostra "Borges - El Mismo, Otro" fica aberta até dezembro na Biblioteca Nacional, em Buenos Aires (bn.gov.ar). A entrada é gratuita.


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