Folha de S. Paulo


Final da minissérie 'Justiça' será 'como a vida', diz autora Manuela Dias

Ao menos 17 milhões de pessoas devem acompanhar na TV, nesta sexta (23), o que será de um político corrupto, candidato a governador de Pernambuco, após a mulher (que agredia verbal e fisicamente) ter resolvido delatar seus esquemas à imprensa.

Exibida num debate eleitoral no episódio da última sexta (16), a denúncia é fictícia, mas ecoa atuais investigações e acusações envolvendo políticos e suas companheiras.

Na série escrita por Manuela Dias e dirigida por José Luiz Villamarim, quatro histórias sobre crimes e castigos se cruzam. Cada história ganhava protagonismo em um dia da semana; nos demais, os personagens de cada trama eram figurantes das outras.

"Todos são protagonistas de suas próprias vidas. Na vida do taxista, os figurantes somos nós", explica a autora.

Eram dramas envolvendo crimes passionais, prostituição, racismo, prisões (injustas) por tráfico, estupro. Temas populares e frequentes no noticiário, que foi uma das inspirações de Manuela Dias.

Durante um ano, escreveu 800 páginas de roteiro consultando recortes de jornais e textos sobre direito. Ouviu histórias reais, como a da mulher que trabalhava em sua casa, cujo marido foi preso por matar um cachorro e originou Fátima (Adriana Esteves), protagonista às terças.

Dia, aliás, de maior popularidade da série no Twitter. Em 13 de setembro, foram 8.200 pessoas falando de "Justiça" na rede social, o terceiro programa de TV mais comentado na semana passada. Os outros três episódios figuraram no top 10 de atrações do período, computado semanalmente pelo Ibope.

Ousada formalmente, a minissérie aumentou em seis pontos a audiência da emissora na grande São Paulo no horário desde a estreia (22/8).

Para os criadores, o sucesso de "Justiça" pouco tem a ver com a temperatura do assunto no Brasil, em meio ao protagonismo do Judiciário na política. Mas com o fato tratar de temas "atemporais e universais", diz Villamarim.

O QUE SERÁ QUE SERÁ

Manuela Dias vai na mesma toada: "A relação entre justiça e dramaturgia é antiga. 'Antígona' é uma peça sobre as leis e o que é justo –a protagonista acha justo enterrar seu irmão, apesar de ser contra a lei". Ex-aluna de roteiro de Gabriel García Márquez e estudiosa de grego arcaico, a autora resgatou na televisão a natureza das reflexões morais, quase pedagógicas, despertadas pelas tragédias da Grécia Antiga.

Sem orientar julgamentos e filmando uma mesma cena sob perspectivas diferentes, "Justiça" promoveu a pluralidade do olhar e a alteridade, ao mostrar o lado bom de bandidos e a vilania dos heróis.

Confundiu o público, que questionou a simpatia reservada ao longo da trama a Vicente (Jesuíta Barbosa), condenado por assassinar a noiva. Passou a série pedindo perdão à sogra (Debora Bloch).

"Perdão e arrependimento são lados da mesma moeda. O que penso sobre Vicente não importa, mas que ele invada o coração de cada um", diz a dramaturga. Inclemente, matou-o na segunda (19).

Como a vida, ela explica, o episódio derradeiro de "Justiça" pode ser "triste, feliz ou aberto". O destino da minissérie, por ora, está selado: não deve ter novas temporadas, e Manuela e Villamarim já tocam novos projetos. Ela escreve uma novela das 23h, dirigida por Amora Mautner. Ele deve dirigir a próxima trama de Lícia Manzo, na mesma faixa.

Caso um segundo ano saia do papel, Manuela adianta que seria "como 'True Detective' [HBO], o mesmo formato com histórias completamente diferentes".

Leia, abaixo, a íntegra das entrevistas com Manuela Dias e José Luiz Villamarim.

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Manuela Dias: "Na vida dos taxistas, os figurantes somos nós"

Folha - No Twitter, os fãs parecem indignados com o final de "Justiça". As histórias irão se concluir em si, ou há abertura para uma segunda temporada?

Manuela Dias - As histórias vão se concluir. Fico feliz de deixar um gosto de quero mais. Esse é um tamanho interessante para muitas coisas na vida, que elas acabem um pouco antes de atingir a saturação.

Ainda que a trama não dê abertura para uma nova temporada: é possível pensar em uma nova safra, ainda que sem relação com a anterior, nos moldes de "True Detective", por exemplo?

Não existe esse planejamento, mas caso haja uma segunda temporada seria como "True Detective", o mesmo formato com histórias completamente diferentes, o que costuma se chamar de "série antológica".

Divulgação/TV Globo
A escritora Manuela Dias, autora de
A escritora Manuela Dias, autora de "Ligações Perigosas" e "Justiça"

Haverá redenção para todos ou podemos esperar mais finais tristes?

Como na vida, existem finais tristes, felizes e ainda os finais abertos.

"Justiça" é uma das principais estreias na teledramaturgia deste ano, e calhou de ir ao ar em um período em que o tema está presente no cotidiano do brasileiro. Vivemos a votação final do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, a cassação de Eduardo Cunha, a judicialização da política. Como acha que a série dialoga com o brasileiro neste momento e que tipo de reflexão espera poder alcançar?

A expectativa de que exista alguma Justiça, terrena ou divina, guia nosso comportamento desde sempre. A ideia e a esperança de Justiça servem como ferramentas fundamentais no processo civilizatório.

No Brasil quase todos os temas passam pela questão da Justiça. A distribuição de renda, o acesso à educação de qualidade, a desigualdade de gêneros no mercado de trabalho, o transporte público. Acho importante repensarmos do micro ao macro nossa relação com a corrupção e o que é justo.

A grande contribuição que a minissérie pode dar é pôr essas questões em pauta, como está fazendo agora.

Como você trabalhou cada tema?

Passei um ano escrevendo os 20 capítulos. Trabalhei com uma equipe de três pessoas, mas escrevo os diálogos sozinha. Com vinte capítulos, são cerca de 800 páginas de roteiro.

Busquei inspiração em tudo, desde a experiência da senhora que trabalhava na minha casa cujo marido foi preso durante uma semana por matar um cachorro, até recortes de jornais, textos teóricos sobre Justiça e filosofia do Direito.

O curso do Michael Sandel, de Harvard, que virou uma série de TV também foi muito inspirador no processo criativo. Até estar grávida enquanto escrevia me inspirou [no início do ano, deu à luz Helena].

Porém, no processo criativo a transpiração é muito mais importante do que a inspiração. Para mim escrever é rescrever. De alguma forma, estou sempre a serviço da história, assim quando a inspiração chegar, vai me encontrar trabalhando.

Os crimes de cada personagem têm apelo popular, à exceção da eutanásia, praticada por Maurício [Cauã Reymond]. Tráfico, crimes passionais, pornografia de vingança, aliciamento de menores. São injustiças que perpassam o cotidiano do brasileiro comum, que ou enfrentam situações assim, ou conhecem alguém que passou por elas. Ou mesmo as acompanham em policialescos populares, como "Cidade Alerta", "Brasil Urgente". O que orientou a escolha dos temas? Acredita que pode existir uma comunhão pela injustiça, e que isso possa estimular um olhar com mais alteridade para o outro?

Acho que essas são questões mundiais e não brasileiras. A relação entre Justiça e dramaturgia vem de muito longe, "Antígona" é uma peça sobre a relação entre as leis e o que é justo –a protagonista acha justo enterrar seu irmão, apesar de ser contra a lei. A dramaturgia se dedica a temas relevantes para o ser humano e a Justiça é um desses temas.

Ao escrever me sinto preenchida de interesse pelo ser humano. Não por seu lado heroico, mas justamente por suas humanidades. Acredito que isso possa guiar o olhar do espectador na direção da alteridade. Precisamos praticar a tolerância e o respeito –práticas que se fazem mais necessárias justamente quando estamos lidando com pessoas que não necessariamente amamos ou admiramos.

"Justiça", especialmente às segundas, trata de um tema muito delicado: violência contra a mulher. Desde o feminicídio à pornografia de vingança. Por que colocá-lo justo como a primeira história, às segundas?

A ordem das histórias se deu de forma orgânica e não estratégica. Existe um crescente de revelações ao longo da semana que desagua na história de Maurício e Antenor e por isso ela ficou com o último dia da semana.

Acompanho telespectadores reclamarem de um possível final feliz para Vicente [Jesuíta Barbosa], condenado por assassinar a namorada [Marina Ruy Barbosa], nas redes sociais. Isso acontecerá, de alguma maneira? Vicente merece perdão?

Perdão e arrependimento são dois lados de uma mesma moeda. O que eu penso sobre Vicente não importa, o importante é que este personagem invada o coração de cada um em busca de perdão.

Sob o ponto de vista prático a Justiça perdoa quando o condenado paga sua pena e é reintegrado ao convívio social. Vicente pagou a pena dele e saiu da cadeia, foi legalmente perdoado.

Essa "implicação negativa" à que a pergunta se refere embute uma função didática à dramaturgia que eu não concordo. A dramaturgia precisa ser livre para provocar todo tipo de reação no público e não só o do final feliz. A dramaturgia pode e deve provocar revolta, indignação, amor, nojo, nostalgia –todos os sentimentos têm seu espaço no drama.

"Justiça" atinge o equilíbrio entre a sofisticação narrativa e a condescendência com o telespectador –afinal, estamos na TV aberta. Consegue dialogar com o fã de séries, como "Breaking Bad", e com o que só vê telenovelas. Até onde você achou que podia ir e em que aspectos precisou ceder para o público menos habituado a tramas sofisticadas?

Não fui guiada pelo formato durante o processo criativo, mas pelo coração de cada trama. O formato nasceu junto com as histórias, na busca de investir protagonismo à toda malha humana que compõe o quadro.

Em "Justiça" o figurante de um dia é o protagonista de outro, assim também é na vida. Todos são protagonistas de suas próprias vidas. Na vida do taxista, os figurantes somos nós.

José Luiz Villamarim: "Não cedemos em nada na minissérie"

Qual a importância da paisagem urbana do Recife para a dramaturgia da série?

José Luiz Villamarim - Sair do eixo Rio-São Paulo e investigar outras geografias é sempre bom. Ir ao Nordeste é buscar uma brasilidade menos frequente na TV aberta. A cidade do Recife é um lugar de contradições econômicas e arquitetônicas.

É como se os personagens se deslocassem entre o edifício Holiday, lotado de gente, e a praia vazia... "Justiça" tem o drama humano como centro da narrativa, nada melhor do que uma cidade que tem uma certa melancolia no ar para contar essa trama.

Estevam Avellar/Globo
Da esq. para a dir.: Cauã Reymond, Walter Carvalho e José Luiz Villamarim nos bastidores da gravação da minissérie 'Justiça', da Globo, no Recife
Da esq. para a dir.: Cauã Reymond, Walter Carvalho (diretor de fotografia) e José Luiz Villamarim nos bastidores de "Justiça", no Recife

"Justiça" chega com impacto ao mesmo tempo em que outra obra também ambientada no Recife: "Aquarius". Uma coincidência curiosa. O que a cidade comunica artisticamente?

Recife é uma cidade plural, de onde vem à tona as mais diversas expressões culturais. Não é à toa que o cinema feito em Pernambuco –e não o "cinema pernambucano" como se fosse um bloco estético único– é hoje, talvez, a melhor e mais diversificada cinematografia do Brasil, com destaque para Kleber Mendonça Filho, Gabriel Mascaro, Claudio Assis, entre outros.

É uma cidade que desperta os olhos. Na pesquisa de locação, junto com Waltinho (Walter Carvalho, fotógrafo e também diretor da minissérie), ele leu alguns poetas pernambucanos para mim.

Um verso do Carlos Pena Filho sobre Recife mexeu comigo, quando ele descreve a cidade "metade roubada ao mar,/ metade à imaginação,/ pois é do sonho dos homens/ que uma cidade se inventa". Em cada sequência de "Justiça" perseguimos essa cidade, ao mesmo tempo existente e por vezes inventada.

Você chegou a assistir "Aquarius"? O que achou?

Infelizmente, não vi "Aquarius" ainda [a resposta foi há uma semana]. Mas gosto muito da obra do Kleber Mendonça Filho. Tanto é que "O Som ao Redor" é uma das referências de "Justiça".

Como acredita que a escalação de atores pernambucanos –Jesuíta Barbosa, Pedro Wagner, Clarissa Pinheiro– contribuíram para o resultado de "Justiça"?

Como "Justiça" tem uma maneira de filmar que, na falta de termo melhor eu chamo de documental, ter artistas locais ajuda a imprimir o realismo. Isso leva o público a acreditar nesses personagens, uma vez que eles têm a prosódia, a maneira de agir e a musicalidade verdadeira. Além disso, Pernambuco é uma terra de grandes atores.

A direção parece adotar uma postura sem julgamentos dos personagens. São histórias, e planos, horizontais: como se fossem sucessões de tragédias e amores em pé de igualdade. Isso esteve nos seus planos? Se sim, qual a importância de justamente promover o não julgamento e evitar vilões fáceis, o olhar para o outro, em tempos belicosos como os que vivemos no Brasil?

É isso mesmo: "Justiça" é uma história que estamos contando, então não nos cabe julgar.

Por isso, buscamos uma maneira mais simples de filmar. A busca incessante da minissérie é para que o diretor desapareça, pois a dramaturgia da Manuela já é potente, não precisa ser reforçada.

Contar essa história com menos planos, nos quais você consegue respeitar o tempo do ator e do texto, sem tentar obter algo a mais com movimentos de câmera, é uma opção feliz de "Justiça". A história já tem uma tragédia interna que não precisa ser exacerbada. Por isso, a horizontalidade da paisagem do Recife e a simplicidade dão a tônica desse projeto.

"Justiça" é uma das principais estreias na teledramaturgia deste ano, e calhou de ir ao ar em um período em que o tema está presente no cotidiano do brasileiro. Vivemos a votação final do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, a cassação de Eduardo Cunha, a judicialização da política. Como acha que a série dialoga com o brasileiro neste momento e que tipo de reflexão espera poder alcançar?

A minissérie não tem a ver com julgamento. Ela não julga nada, apenas propõe uma discussão para o espectador. As histórias não têm a ver com o momento atual, são atemporais e universais.

A minissérie atinge o equilíbrio entre a sofisticação narrativa e a condescendência com o telespectador –afinal, estamos na TV aberta. Consegue dialogar com o fã de séries, como "Breaking Bad", e com o que só vê telenovelas. Até onde você achou que podia ir e em que aspectos precisou ceder para o público menos habituado a tramas sofisticadas?

Não cedemos em nada. A história que a Manuela escreveu e eu fui dirigir é a que está no ar. A única preocupação, do ponto de vista conceitual, foi escalar um elenco de rostos conhecidos nacionalmente.

É algo que ajudou na construção das cenas conjuntas, quando há o cruzamento entre as tramas. Foi uma busca para a fidelização do espectador, para que as pessoas ficassem curiosas ao perceber a Adriana Esteves, por exemplo, passando como figurante na trama protagonizada pela Debora Bloch. Mas foi só isso –a história que a gente queria contar é essa que está na TV.


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