Folha de S. Paulo


Marco Dutra retrata terror da falta de diálogo entre um casal após estupro

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Nos filmes de Marco Dutra, o horror cresce aos poucos, como se aguardasse a hora certa de brotar das frestas de mercadinhos de bairro e apartamentos lúgubres.

Em "O Silêncio do Céu", que estreia nesta quinta (22), o diretor põe o pavor logo na cena que abre o filme: uma sequência de dois minutos de um estupro retratado entre sombras e sons abafados.

O terror aqui não se refere ao gênero com que o Filmes do Caixote, quinteto do qual Dutra faz parte, tem oxigenado o cinema paulista.

Rodado em Montevidéu, "O Silêncio do Céu" está mais para um thriller psicológico que vez ou outra envereda por ambientes sinistros do que para obras com pitadas fantásticas, como "Trabalhar Cansa" (2011), dirigido por Dutra e Juliana Rojas, e "Quando Eu Era Vivo" (2014), de Dutra.

Foi o produtor Rodrigo Teixeira quem idealizou o projeto, inspirado no livro "Era El Cielo", do argentino Sergio Bizzio. "Não era um filme fantástico como os meus anteriores, mas me instigou mesmo sendo pé no chão", diz Dutra.

O ator argentino Leonardo Sbaraglia (o motorista pavio curto de "Relatos Selvagens") e Carolina Dieckmann interpretam Mario e Diana, casal que reatou há pouco tempo. No início da trama, ela é vítima de um abuso sexual.

O marido, que assiste a tudo escondido, não consegue reagir e defender a mulher. Cada um prefere esconder do outro a própria experiência do que houve: ao marido, ela parece reagir ao crime com perturbadora serenidade; à mulher, ele não dá pistas de que testemunhou o estupro.

"Eles são incapazes de falar com transparência: têm tanto medo de romper o que os une que preferem o silêncio", diz Sbaraglia, por telefone. Seu personagem é um sujeito que coleciona medos e que, para lidar com o novo trauma, "termina construindo uma ficção de si mesmo, perdendo o norte".

Para Dutra, trata-se de um personagem "emasculado": "Ele tem uma ideia de si, mas reprime o que sente. É violento porque não consegue lidar com a sua fragilidade".

O diretor diz que se interessou por abordar nesse filme a questão dos pontos de vistas de cada polo do casal.

"Queria entender os processos internos deles e como não conseguem dialogar", diz. As narrações se alternam entre os dois personagens, e a câmera uma hora adota o ponto de vista dele, outra a dela, muitas vezes ocultando detalhes do quadro. "É natural perder algo do que está em cena, porque tudo se passa na cabeça deles."

ESTUPRO E FETICHE

A grande questão como cineasta, diz Dutra, foi como retratar o estupro.

"Até agora não sei se é possível filmar isso, se é possível representar o crime sem ser pornográfico ou agressivo com o público ou com a equipe". O diretor chegou a cogitar não filmar a cena.

"Aquilo não é uma cena de sexo, é pura violência. Não queria criar um fetiche", diz ele, que vê sinais de voyeurismo na obra de outros cineastas, como Gaspar Noé, que em "Irreversível" (2002) rodou uma sequência de nove minutos, sem cortes, em que a personagem de Monica Bellucci é violentada numa passarela subterrânea.

"Acho um pouco fetichizada. A câmera só observa, não interage, não opina sobre aquilo. É quase uma câmera de segurança", afirma Dutra.

Nesta semana, levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Datafolha mostrou que até um terço dos brasileiros creem que a mulher que é estuprada é culpada pela agressão se opta por usar certas peças de roupa.

"O trauma de Diana é super-realista. Boa parte das mulheres não falam sobre o assunto no primeiro mês seguinte ao crime. Entendo o silêncio dela: está processando algo que é privado", diz Dutra. "Só que nunca achei que esse fosse um filme sobre violência sexual, mas sobre a consequência trágica entre aqueles que não conseguem se comunicar."


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